Um balanço final da primeira temporada de The Deuce

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Teria sido frustrante se a HBO não houvesse confirmado uma segunda temporada de The Deuce. Isso porque a série teve a ambição de construir um quadro enorme do mercado do sexo na Nova York dos anos 1970, e porque este quadro mal começou a ganhar vida. Ao mesmo tempo, como ninguém é bobo, a primeira temporada acabou sendo uma história completa – pouco ficaria em aberto se mais episódios não fossem encomendados.

The Deuce ganhou elogios de veículos especializados e já saiu com a expectativa lá no alto por causa do renome de seus criadores. David Simon é o sujeito por trás de The Wire. George Pelecanos, além de ter trabalhado em The Wire, é um reconhecido autor de romances policiais. Richard Price, um dos produtores executivos, foi responsável por The Night Of e também é um romancista importante. No elenco estão James Franco e Maggie Gyllenhaal, além de um monte de rostos conhecidos para quem viu qualquer coisa nos últimos quinze anos.

Ainda assim – e como acontece com frequência – o burburinho não durou muito. A série não é daquelas de colocar a internet inteira em colapso quando alguma coisa vai acontecer. Pelo que eu vi a recepção no Brasil foi meio morna. The Deuce não pegou de jeito aquele pessoal que é louco por séries, nem entusiasmou bastante a turma cinéfila. Da minha parte, ah, eu achei que fosse me entusiasmar mais. Acho que houve algumas concessões bobas ao que se pensa ser o gosto do público. Vou tentar explicar.

Um exemplo é o arco de Eileen, interpretada por Maggie Gyllenhaal. Talvez em tempo de tela não dê para perceber o tamanho da centralidade da personagem dela, mas é ela quem conduz tudo. As mulheres de The Deuce estão ou em conflito para perceber que um novo lugar no mundo é possível, ou em luta para construir este novo lugar. Eileen é uma prostituta que não tem cafetão. Os cafetões exploram as meninas, sob a desculpa de protegê-las, mas Eileen não é o perfil comum de uma prostituta. Ao longo dos oito episódios a gente descobre que ela apelou para a prostituição para fugir de um pai repressivo, mas que vem de uma família mais abastada que as das demais. Nas ruas ela corre tanto perigo quanto as outras mas, diferentemente das outras, resolveu administrar sozinha o que ganha e como trabalha. Eileen é bem resolvida com sua sexualidade. É madura, liberada, inteligente, conhece bem o próprio corpo. Acontece que o ambiente de trabalho é muito, muito insalubre. Não é de espantar que algumas meninas queiram proteção. Ela apanha de mais de um cliente, o perigo vem como que em escalada. O fim da década de 1970 é um dos períodos mais violentos da história de Nova York. A polícia não liga se algum maluco enforca, esfaqueia ou estripa uma garota de programa. A situação fica insustentável e Eileen precisa parar de trabalhar. Por sorte os tempos estão mudando e, por competência, ela consegue se envolver num negócio que só vai crescer: o cinema pornográfico.

Não tenho nem como negar que isso é muito legal. Eileen é uma personagem central porque serve como símbolo da mudança dos tempos. Na juventude ela foi reprimida pelas limitações sociais, os tabus sexuais a marginalizaram – com uma revolução nos costumes ela vai encontrar seu lugar. A princípio Eileen fica na frente das câmeras, transando, mas depois ela começa a usar a criatividade e mostrar que é capaz, e aí a oportunidade surge. Quando a temporada termina ela já está dirigindo seu primeiro filme, um pouco por acaso e um pouco por obstinação. Para mim isso é quase um modelo de arco. Ela foi do ponto A ao B e tudo se encaixa com o grande panorama histórico. Onde estão as concessões bobas? Na hora de colocar essa jornada na tela.

DEUCE - THE

O roteiro traz uma personagem cheia de complexidades, mas ao mesmo tempo quer contar essa história como se estivesse falando com uma criança, como se The Deuce fosse um telefilme edificante. Um exemplo pontual está numa cena do último capítulo. O lugar é um set de filmagens. Maggie Gyllenhaal está usando meias 7/8 e um robe de seda. Eileen está pronta para rodar sua próxima cena. Mas o telefone toca. Uma assistente atende. O diretor não vai conseguir chegar a tempo. O que resta a fazer a não ser ir para casa? Mais do que obstinada, Eileen parece predestinada a assumir aquela posição: já que o diretor não vem, quem dirige sou eu. Faz sentido? Na vida real, eu não tenho dúvida nenhuma de que uma atriz pornô consiga dirigir um filme. Eu sei que isso acontece bastante. Muitas atrizes juntam dinheiro e abrem suas próprias companhias com o objetivo de ter controle sobre tudo o que fazem ou de ganhar dinheiro ao produzir conteúdo num meio que já conhecem. Só que The Deuce tratou esse processo de um jeito simplificador em excesso. O set é grande. Há um assistente de iluminação, uma contra-regra, vários atores, cenário, figurino, dinheiro envolvido: tudo isso para uma pessoa com zero experiência tomar as regras só porque se dispôs a aprender fazendo. O desenrolar da cena não é só inverossímil para qualquer um que já tenha trabalhado com qualquer coisa: ele também é feito com o máximo apego a fórmulas muito conhecidas de quem acompanha, por exemplo, o Supercine. Eileen compreende o trabalho do diretor, dá pitaco na direção de arte, trabalha o lado psicológico das atrizes menos experientes. Maggie Gyllenhaal faz tudo isso com a sutileza de um trator: cara de boazinha, cara de compreensiva, cara de quem está exercitando a criatividade.

Seria legal ver mais novidades em uma série com as pretensões de The Deuce. A sensação de déjà vu também bate forte quando se acompanha alguns dos personagens secundários: a jovem rica que largou a faculdade para virar garçonete, desafiar os pais e viver a “vida real”; a prostituta sonhadora que lê e vê filmes entre um programa e outro; o trabalhador assalariado que se encanta com as possibilidades da vida do crime; o trabalhador honesto que se vê seduzido pela máfia ao reafirmar sua masculinidade; o casal gay em crise porque um tem mais reservas que o outro a respeito de demonstrar intimidade em público e sair do armário. De novo: tenho certeza de que essas pessoas existem na vida real, mas acho que não precisamos vê-las no cinema e na tevê, para sempre, sob as mesmas luzes.

Mas todo esse didatismo não chega a estragar a série, que tem um fio condutor bem interessante. No fim das contas, o antagonista principal em The Deuce é o homem que contrata prostitutas. Ele aparece pouco, mas é a escrotidão em forma de criatura. Mais vil que os cafetões, mais hipócrita que os mafiosos e policiais, muito mais problemático que as prostitutas, o homem que contrata prostitutas é quem as submete à violência, quem solicita o sexo e quem as reprime por terem fornecido aquilo que ele solicitou. Trocando em miúdos: em The Deuce o homem que contrata é o símbolo de uma doença social. Ele vai ferrar todo mundo porque quer sexo, ele vai fazer de tudo para esconder suas preferências, ele vai pagar o que for preciso para ter o que quer. Quando a sociedade e a tecnologia permitem que essa obsessão seja levada adiante sob a proteção da privacidade é que surge a milionária pornografia moderna.

(Eu não sei se essas hipóteses correspondem exatamente à realidade, mas não custa lembrar que o Brasil, por exemplo, é ao mesmo tempo o país que mais mata transexuais e o que mais consome pornografia trans.)

De qualquer forma, em The Deuce os personagens servem para levar uma tese adiante: a de que uma revolução nos costumes e na tecnologia tirou o sexo pago das ruas e o levou para dentro das casas. Às vezes essa tese chega até a gente de um jeito meio simplista e quadradinho, mas o resultado final é bom. O tema fica mais e mais interessante na medida em que a gente conhece mais ângulos, e isso não é um feito que toda série consegue realizar. Pelo jeito a segunda temporada vai querer investigar se essas grandes mudanças na indústria do sexo e na sociedade serão necessariamente boas.

P.S.1: A recriação da época, em cenários e figurinos, está impecável.

P.S.2: Eu não sei julgar se James Franco é bom ator, mas eu adoro a participação dele em The Deuce. Ele faz irmãos gêmeos: um é malandro, o outro é ainda mais malandro. Os dois só se beneficiam do jeito canastrão de Franco.

O Exorcista: segunda temporada é muito melhor que a primeira

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A primeira temporada de O Exorcista foi uma confusão tão grande que quase fez o demônio pedir as contas e ir embora. Eu também cheguei a desistir já no episódio piloto, mas alguma coisa, algum poder sobrenatural (ou uma quedinha por entretenimento de baixa qualidade…) enfiou na minha cabeça a disposição para dar uma segunda chance à série e, sei lá quanto tempo depois, aqui estou eu, animada o bastante para falar que a segunda temporada (na altura do quarto episódio quando escrevo) encontrou um caminho promissor, conseguiu se livrar de boa parte do entulho que atrapalhava a primeira e fez valer a minha paciência.

Para quem não acompanhou, O Exorcista não é uma adaptação do filme ou do livro ao formato seriado para televisão. O filme de William Friedkin ficou no passado. A primeira temporada acompanhou uma família afligida pelo mesmo mal que se alojou na menina Regan nos anos 1970, mas a história é atual. Bom, para falar com sinceridade: a história não tem nada a ver com o material original – só que, para a minha surpresa, isso não é um defeito. Ter que voltar à fonte e fazer as conexões com o passado é o que atrapalha a temporada. Por boa parte dos episódios as referências ao filme clássico não passam de uns acenos visuais aqui e ali, até a hora da grande reviravolta, que é quando a gente percebe que, pois é!, a série se seguraria melhor sem precisar costurar, remendar e fazer de tudo para tentar carregar o nome “O Exorcista”.

Mas os dois ou três últimos episódios da primeira temporada já anunciaram o que viria pela frente. A verdade é que O Exorcista é uma antologia que tenta misturar Supernatural com American Horror Story com um tiquinho assim de The Vampire Diaries. Os padres Marcus Keane e Tomas Ortega são personagens que jamais caberiam no universo do filme original. Mas o demônio também mudou. Se antes ele queria a destruição pela destruição, agora o mal faz planos e conspira pelo controle da humanidade. Há uma seita demoníaca dentro da Igreja Católica e não faltam rituais, tramoias e emboscadas. Fiel ao estilo das séries que a inspiraram, O Exorcista coloca os padres no meio da ação. As batalhas não são apenas espirituais e os servos de Deus não raro caem no soco, apontam armas e participam de perseguições automotivas. Vale tudo para salvar uma alma pois o embate entre o bem e o mal é uma guerra declarada.

As intrigas do grupo satanista no seio do Vaticano são o fio condutor entre as duas temporadas. A segunda, que começou no finzinho de setembro, trouxe uma penca de gente nova e uma outra entidade a ser combatida. As novidades só fizeram bem. Em vez de uma tentativa toda atrapalhada de encaixar a série nas rédeas da mitologia original, O Exorcista agora tem uma história própria com um monte de elementos mais ou menos fresquinhos.

Andy Kim – interpretado pelo subestimado John Cho – é um sujeito bacana e sobrecarregado que cuida sozinho de um lar para jovens que perderam a família. Eles vivem numa ilha bonita, isolada e um pouco macabra. A mulher de Andy morreu num incidente mal explicado, um suicídio até que se prove o contrário. No primeiro episódio, coisas estranhas estão acontecendo e as crianças estão inquietas. Enquanto isso, os padres estão em outro lado do país levando a vida normal daqueles que combatem as forças das trevas, isto é: sequestrando uma endemoniada e caindo na porrada com o marido caipira dela e os amigos caipiras dele.

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Acho que vale a pena dar uma chance a essa série, mesmo se você não teve paciência para Geena Davis e companhia na primeira temporada. Algumas surpresas estão dando as caras. Um exemplo: no S02E04, pela primeira vez, eu fiquei até arrepiada de medo. Diminuíram os esforços de conversar visualmente com o filme clássico, mas a ação ininterrupta da temporada inicial deu lugar a um passo mais lento, e por isso mais capaz de assustar. O terror agora se inspira em coisas como Invocação do Mal e Sobrenatural e tem uma trama que, a princípio, lembra um pouco a de Annabelle 2.

Até agora pouca coisa aconteceu. Claro que o vulnerável Andy Kim e suas crianças mais vulneráveis ainda vão cruzar o caminho dos padres, claro que o mal vai encarnar em alguém; mas um ponto positivo, a essa altura, é que não se pode prever muito do que acontecerá daqui em diante. Eu ainda tenho muitas perguntas. Esse demônio isolado na ilha faz parte do grande plano satanista? Como? Os padres vão ter que exorcizar quem? Cadê o interesse amoroso do padre Tomas Ortega, aquela chatinha que se arrastava nele? Será que mais alguém está shippando os dois padres? Será que isso é considerado pecado?

Mindhunter é uma das melhores séries que a Netflix já fez

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As décadas de 1990 e 2000 foram muito boas para quem gosta de filmes de serial killers. O Silêncio dos Inocentes ganhou o Oscar de melhor filme em 1991 e cimentou esse filão do suspense. Depois disso surgiram muitas produções com resultados variados e, ultimamente, a fórmula tem mostrado cansaço. O diretor David Fincher estreou no gênero com Seven, em 1995, depois fez o meu preferido, Zodíaco, em 2007, e agora leva Mindhunter à Netflix.

A televisão americana tem uma quedinha especial por mistério e por quem-matou-fulano-de-tal e, para tentar combinações diferentes, inventou de tudo (inclusive o serial killer condicionado a só matar quem merece morrer). Por isso é muito legal perceber que Mindhunter consegue trazer muito daquilo que a gente conhece, de um ponto de vista ligeiramente diferente (que é o que todo mundo quer fazer), mas sem enfiar os dois pés na jaca.

A história é, como acontece com frequência, a de um agente do FBI. Até aí não há novidade. Acontece que esse agente não quer necessariamente desvendar um caso especial e intrigante. O que ele faz é estudar o crime como um fenômeno maior. É esse ponto de vista que abre todas as sacadas legais de Mindhunter, e o que permite esse ângulo é o material original. A série foi baseada num livro de John E. Douglas e Mark Olshaker. Douglas é um ex-agente do FBI, a carreira e as descobertas dele são as inspirações para o personagem principal. Ele trabalhava no bureau bem na época em que o grande público e as instituições foram obrigados a tentar entender o que significavam os assassinatos em série – uma coisa talvez tão antiga quanto a roda, mas um conceito relativamente novo àquela altura.

O ano é 1977. Os americanos ainda estão perplexos com os crimes do Filho de Sam, um serial killer que dizia agir sob os comandos de um cachorro falante. A reconstrução de época que Mindhunter faz não serve só para que a gente sinta o clima do final da década de 1970. O próprio conceito de serial killer vai sendo apresentado aos poucos, sempre em confronto com a época e com as pessoas que então tentavam entender e combater o crime. O Filho de Sam não era o único, e as pessoas tinham a sensação de que o mundo ia ficando mais e mais difícil de se compreender.

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Essa recriação é fantástica. Para quem acompanha o noticiário em 2017, para quem viu a penca de suspenses lançados desde O Silêncio dos Inocentes, a importância, por exemplo, de perfilar um criminoso pode parecer óbvia. O trabalho de Mindhunter é demonstrar como é que essa obviedade se estabeleceu. Ao mesmo tempo, não há só a questão de dar nome a um crime antigo, ou de entender a mente dos seres humanos capazes de cometer as maiores e mais assassinas maluquices. A série parece dizer que, com a mudança dos tempos, também mudou o tipo de loucura que se precisa enfrentar.

Nesse sentido, Mindhunter é de apavorar. Há um diálogo constante entre o choque representado pela novidade de cada crime, lá em 1977, e a nossa incapacidade, em 2017, de ver qualquer atrocidade como novidade. A escalada dessa loucura coletiva é o principal tema da série. O personagem central, vivido por Jonathan Groff, parece não se abalar com o que vê. A princípio ele entrevista psicopatas e reflete sobre a natureza do que eles fazem em nome de nada além de sua própria ascensão profissional. Só depois ele vai perceber o verdadeiro peso daquilo com que está lidando. Nessa hora o espectador é convidado a se espantar de novo com a violência e a desumanidade, a sair de um certo estado de torpor.

Eu não tenho nem vergonha de dizer que terminei os 10 episódios dessa primeira temporada de Mindhunter no fim de semana de seu lançamento. Acho que David Fincher e companhia entregaram uma das melhores coisas que a Netflix já fez. Vi algumas pessoas reclamando de lentidão ou falta de objetividade, mas acho que essas críticas não valem quando uma série tenta ver em detalhes um panorama tão grande. Além disso, seria difícil pensar em um elenco melhor do que o que Mindhunter tem, com destaque para Anna Torv (aquela de Fringe) e Holt McCallany (que eu não conhecia de nome).

Não sei se uma segunda temporada já está garantida, mas até me empolgo com o que ela tem a apresentar. Na vida real, John E. Douglas entrevistou Ted Bundy, Charles Manson, O Filho de Sam, John Wayne Gacy, Richard Speck, Edmund Kemper e vários outros. Até agora, dessa lista só apareceram Speck e Kemper. E quem chegou até o final sabe o efeito que esses dois tiveram nas vidas dos personagens principais. Agora é esperar.

Legião, de William Peter Blatty

Legião darkside

Quando William Peter Blatty escreveu Legião, ele já era famoso por O Exorcista, o livro, e pelo roteiro de sua adaptação ao cinema. O filme não precisa de introduções. Deve ter gente que nunca o viu e mesmo assim pode dizer tudo o que acontece, tamanha a permanência dessa franquia na cultura popular. Partindo daí Legião tenta duas coisas bem difíceis: contar uma história totalmente nova e, ao mesmo tempo, reclamar para ela o renome e a distinção da história antiga.

O problema é que o romance original não precisava de sequência. O Exorcista é uma história de redenção, de expiação e, por fim, da luta do bem contra o mal. Depois de uma jornada terrível, o bem vence – mas a vitória é tão custosa que a sensação que fica, tanto no romance quanto no filme, é a de que o mal estará para sempre à espreita, ou seja, de que a batalha é eterna. Só que a história daquelas pessoas, da menina Regan, da mãe dela, dos padres Damien Karras e Lankester Merrin, já havia sido contada.

Para não deixar a chama se apagar, William Peter Blatty fez de Legião (que saiu no Brasil pela Darkside, na tradução de Eduardo Alves) um romance policial com todos os ingredientes a que a gente já se acostumou e, como que por obrigação, deu um jeito de costurar nele o pano de fundo sobrenatural que o liga a O Exorcista. Um assassinato ritualístico e um detetive em crise existencial são ingredientes de metade dos romances policiais que já se fez. O detetive Kinderman, que no primeiro livro investigava uma morte suspeita, é agora um homem amargurado (embora amoroso) e desiludido com (literalmente) Deus e o mundo. Veterano, ele já viu muita coisa feia, muita maldade e loucura, mas quando o encontramos ele está na cena de um crime que não acontece todo dia. Um menino foi crucificado. Ao que tudo indica, ele passou consciente por dor e sofrimento. Isso leva Kinderman a pensar.

E quando Kinderman pensa o livro fica um pouco chato. Legião tem algumas das mesmas qualidades que fizeram de O Exorcista uma história inesquecível. Blatty cria cenas memoráveis, todas sob uma espécie de horror ao mesmo tempo sobrenatural e mundano; seus personagens são sombrios e deprimidos, todos com cruzes a carregar, mas, enquanto o sucesso do primeiro livro se deve em parte à simplicidade da batalha do bem contra o mal, a maior fraqueza de Legião está em tentar esmiuçar essa luta em digressões que vão das meio bobas às bastante constrangedoras, ditas sempre através de Kinderman, seja em fluxos de consciência, seja em diálogos extremamente mastigados e um pouco caricatos. O detetive está à beira da loucura, tudo bem, mas isso não o exime de ser um verdadeiro apanhado de todos os clichês de detetive já feitos.

Isso significa que Legião é ruim? De jeito nenhum, mas vale avisar que há umas oitenta ou cem páginas, mais ou menos no meio do livro, sobre as quais é necessário passar correndo: as sacadas de Kinderman quebram verossimilhança, deixam evidente a voz do autor (com isso esvaziando o personagem), parecem saídas diretamente da enciclopédia Barsa, às vezes são só bobinhas, às vezes bem pretensiosas. Ter que remeter essa história de um detetive no rastro de um serial killer ao exorcismo do primeiro livro também não ajuda. Blatty precisou ressuscitar um personagem, rearrumar certas circunstâncias, explicar eventos que não só não precisavam de explicações como ainda saem prejudicados por elas.

Essa bagunça é triste porque alguns dos elementos novos são muito bons: a história de origem do Geminiano, o serial killer em questão, é de gelar a alma; o hospital em que boa parte da ação se passa cria vida através das histórias bizarras de seus muitos internos; as mortes são intrigantes e criativas. Para não cometer injustiça, mesmo que boa parte da construção de Kinderman seja prejudicada por aquele palavrório aborrecedor, a personalidade do detetive consegue ganhar força nas cenas em que ele se concentra em sua família, e no capítulo final, que me parece mais otimista e menos apressado que o do primeiro livro.

Por último, vale lembrar que Legião inspirou o filme O Exorcista III, com direção do próprio William Peter Blatty. É assistir e não dormir por uns três dias.

Twin Peaks chega ao auge com 25 anos de atraso

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A polícia encontrou a cabeça de uma mulher, logo identificada como Ruth Davenport, num apartamentinho bem organizado, em uma vizinhança pacata da cidade de Buckhorn, na Carolina do Sul. Lá também foi encontrado um corpo, que não era o de Ruth, mas o de um homem não-identificado. Enquanto isso, Dale Cooper, agente do FBI, está preso em outra dimensão desde 1991. Ele tenta voltar para esta dimensão, a nossa, mas parece que seu lugar aqui está sendo ocupado por um doppelganger sinistro, que construiu uma carreira de assassinatos e maldade. Em Nova York, um bilionário anônimo conduz um experimento em que um rapaz precisa vigiar, sem pausa, uma cabine de vidro.

Esse cenário é armado no primeiro episódio da volta de Twin Peaks. Dali em diante acontecem bizarrices numa velocidade que a gente não vê todo dia na televisão. Tem um monte de personagens, pelo menos três cidades, histórias antigas que ganharam argumentos novos e histórias totalmente novas que vão precisar, de algum jeito, encontrar uma ligação com tudo o que quem viu as temporadas velhas conhece. Mark Frost e David Lynch vão amarrar todas essas pontas soltas? Duvido que isso esteja nos planos.

Eu rodei a internet atrás de gente falando de Twin Peaks e vi que as pessoas estão bem divididas. A profusão de personagens e histórias paralelas incomoda uma parte do público. Outra parcela está inquieta com a lentidão com que se desenrolam os plots principais. Há quem deteste Dougie Jones e os que até estavam gostando mas acham que já deu. Outra parcela é a daqueles que estão achando tudo lindo. Nesta eu me incluo.

Acho que a terceira temporada caminha para ser a melhor até agora. Muita gente superestima a dificuldade de acompanhar a série, mas não dá para negar que algumas coisas são confusas. São confusas de propósito, diz o fã mais entusiasmado. E com razão, mas convenhamos que este é um argumento um pouco preguiçoso, se ele for parar aí. Geralmente essa discussão desanda em alguém dizendo que a trama é complexa, picotada, não-linear, que há mensagens subliminares e que o sentido final só será acessível a quem conseguir enxergar todas as camadas e juntar as peças. Disso eu discordo. Eu acho que o que Twin Peaks quer afirmar já foi posto há muito tempo, e é algo do tipo: o mal é um espírito capaz de possuir qualquer pessoa, e assim todo tipo de maldade vem do mesmo lugar mas se manifesta de maneiras diferentes; o bem é como uma plantinha frágil que deve ser cultivada; tanto o bem como o mal têm uma carga de ridículo que às vezes só pode ser encarada na base da piada.

Acho que todas as cenas valiosas de Twin Peaks reforçam uma dessas três afirmações ou alguma combinação delas, mesmo que um detalhe fora de lugar ou uma perspectiva bizarra tente levar a nossa atenção numa direção diferente. Tem uma cena do episódio mais recente (até agora foram 11 nesta terceira temporada) que serve como exemplo.

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Bobby Briggs era um traste. Foi um dos primeiros suspeitos no caso do assassinato de Laura Palmer porque era um rapazinho metido a bad boy, chato, alguém que não falava coisa com coisa e vivia mascando chiclete. Eles foram namorados e Laura recorria a ele para conseguir cocaína. Quando começa a primeira temporada, Bobby vive no limite da marginalidade apesar de ainda frequentar o high-school e viver com os pais. Na série antiga ele não teve um desenvolvimento para além disso, apesar de algumas pistas lá pelo final da segunda temporada. Mas agora, em sua primeira aparição na temporada três, vinte e cinco anos depois, vemos que ele virou um policial sério e membro respeitável da comunidade de Twin Peaks. Só que são muitos personagens. Bobby surge já policial no episódio quatro, sem qualquer explicação, e depois não se ouve nada (ou quase nada, pode ser que a minha memória me engane) a respeito dele.

Shelly Johnson foi quem teve mais tempo de tela ao lado de Bobby, lá nos anos 1990, quando os dois formavam um casal de pilantras. Ela era uma garçonete meio inocente e meio trambiqueira, vítima de violência doméstica. Shelly também apareceu pouco nessa volta de Twin Peaks, mas dela sabemos mais. Agora ela tem uma filha já adulta e continua trabalhando no mesmo restaurante. O reencontro de Shelly e Bobby era aguardado pois as informações estavam incompletas. A filha dela era filha de Bobby? Os dois não estavam mais juntos? E é aí que entra a cena especial que eu estou tentando usar como exemplo.

Becky, a filha de Shelly, é um pouco instável. Ela vive com o marido num trailer horroroso. Os dois cultivam aquele tipo de relacionamento que só vai dar muito errado porque ninguém se ajuda. A certa altura do episódio onze, a filha mete a mãe no meio de sua confusão conjugal (descontrolada, aos gritos, sem pudor de causar preocupação). Acaba que Becky sai no rastro do marido e, não o encontrando, atira várias vezes contra a porta de um apartamento em que ela pensava que ele se escondia. É no meio da confusão que descobrimos que Bobby (agora policial, agora alguém com quem se pode contar) é, sim, o pai da filha de Shelly.

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A cena começa como uma intervenção. Bobby (aquele mesmo Bobby que não era digno de confiança) é o pai aflito. Shelly (aquela que era irresponsável e volúvel) está com lágrimas nos olhos. A filha diz que perdeu o controle, que isso não vai acontecer mais, que odeia o marido, que ama o marido, que não vai pagar pelo prejuízo que causou, que não teria dinheiro para isso; e aí os pais, cada um de um jeito, claramente separados, se dispõem a ajudar com dinheiro. O tom é de bronca, mas não parece ser a primeira vez que uma conversa dessas se faz necessária. Um novo namorado de Shelly surge na janela. Bobby fica claramente arrasado, é óbvio que ele ainda a ama. A filha sabe disso. Toda a sequência tem muito mais informação que diálogo. Ficamos sabendo muito da personalidade de Becky, descobrimos que Bobby ainda ama Shelly, que Shelly já partiu para outra, que Norma (a patroa, aquela velha amiga) não concorda com as decisões de sua funcionária mais antiga. Logo saberemos que Bobby virou quase completamente o oposto daquilo que era. Um tiro atravessa a janela do restaurante e todo mundo entra em desespero. Treinado, Bobby toma a dianteira, empunha a arma e vai para a rua investigar o que aconteceu, com aquela pose de policial em alerta. O costume de quem já viu mais de uma série de tevê me levou a crer que havia alguma conspiração em jogo, que aquele tiro resultaria num tiroteio, que aquilo não terminaria ali e seria mais uma peça a se encaixar no quadro geral.

Mas o que se desenrolou foi um desses momentos bizarros de Twin Peaks em que a tragédia parece uma coisa totalmente besta, mas nem por isso menos horrível. Aconteceu que um menininho disparou sem querer a arma do pai, de dentro de um carro. O carro parou, começou um engarrafamento. A mãe do menino está em pânico, indignada com o marido por ele ter deixado que uma coisa dessas acontecesse. Bobby vai até eles. A câmera o acompanha. A criança que mexeu na arma tem o ar de um monstrinho possuído e encara Bobby com raiva. As buzinas não param, mas um carro, em especial, faz mais barulho que os outros. A sequência é montada para causar tensão: eu achei que Bobby fosse morrer, que alguma coisa iria explodir, que algum tipo de monstro fosse pular na tela. Mas não. O que acontece é que Bobby vai até o carro que buzina sem parar e ouve o sermão de uma mulher descontrolada: ela está atrasada, isso não poderia ter acontecido. A mulher está naquele desespero comum às pessoas que se deixaram levar pela infelicidade cotidiana, mas até ali o desespero é assustador e até que patético. Só que a câmera segue os olhos de Bobby para dentro do carro. Num cantinho escuro tem uma forma a se mexer, a forma é um menino, o menino está tendo um tipo de ataque e começa a soltar uma gosma pela boca. Não é bem vômito. Não tem o impulso do vômito. É mais uma gosma mesmo, como se alguém tivesse aberto um furinho por onde sai um líquido pegajoso.

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E aí a sequência acaba. Foi apavorante e, ao mesmo tempo, bem familiar. O mal é horrível, muito comum, ataca sem aviso e não tem, necessariamente, explicação ou conexão com alguma ordem maior. O bem é uma coisa frágil a ser cultivada. É Bobby Briggs – bully, peso-morto, golpista, desgosto da família – quem agora tenta organizar toda a bagunça.

Eu acho que Twin Peaks vem contando a mesma história em todos os seus episódios, mas também acho que vai ser covardia não encaixar pelo menos algumas peças. O que talvez já dê para dizer é o seguinte: a primeira temporada, que foi infinitamente melhor que a segunda, não tinha a regularidade e a imensidão de recursos (os recursos visuais e artísticos, os atores muito bons, a liberdade absoluta) que essa terceira temporada vem mostrando. Para mim, Twin Peaks chegou a seu auge com 25 anos de atraso.

Três livros da meta de 2017

Ano passado eu tive a brilhante ideia de criar uma meta de leitura com 12 livros que estavam encostados aqui na prateleira de casa. Um para cada mês, fora os outros que fossem aparecendo durante o ano. Um outro objetivo era escrever um texto para cada livro aqui no blog. 2016 acabou, eu dei conta da tarefa e fiquei muito feliz. É tão difícil finalizar uma coisa, qualquer coisa, que eu pulo de alegria quando consigo. Empolgada, em 2017 eu resolvi dificultar um pouco mais e incluí livros que acabaram exigindo uma leitura mais lenta, seja por conta do número de páginas ou das características de tal e tal obra.

Mas o ano está super corrido e é claro que agora, depois da metade de julho, eu me encontro arrependida e atrasada. É que eu me embolei com alguns romances e ainda resolvi ler outros bem exigentes (em tempo, disposição, atenção…), coisas que nem estavam nos planos. E aí me esforço para lembrar que isso aqui é um hobby, um dos prazeres da vida. É tão bom achar livros empolgantes, lê-los e descobrir mais e continuar nesse ciclo infinito (nem tão infinito porque um dia a gente morre e acaba o tempo para ler e deixa tudo para trás, mas acho que me fiz entender).

Não estou querendo dizer que abandonei a meta. Um dia eu gostaria de ser outra pessoa e ter esse desprendimento para dizer que não deu e paciência. O que eu vou ter que fazer é rearranjar todo o esquema, já que (1) não estava prático escrever os textos sobre os livros, (2) ninguém se importava mesmo e (3) mesmo gostando de alguma coisa, nem sempre eu tenho o que dizer sobre ela. Daí eu resolvi fazer a metade da tarefa, ou seja: vou em frente, terminando livro a livro quando conseguir, e agora, em vez de escrever um texto para cada um e publicá-lo no começo do mês seguinte, vou agrupar três livros de cada vez, escrever quando for possível e postar quando der vontade.

Né? Que pessoa liberada, sensata, despreocupada.

Três dos que eu já terminei (os outros três da meta já lidos foram resenhados aqui, aqui e aqui):

memórias de adriano

Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, foi o melhor livro que eu li em 2017. Não acho que isso vá mudar até o fim do ano. Não foi uma surpresa porque toda a aura do romance me dizia que ele seria especial. Também foi um dos livros mais contemplativos que eu já li. Eu só conseguia ler poucas páginas por dia e em total silêncio, sem música, vozes, passarinhos cantando. O livro é como uma autobiografia do imperador Adriano. São memórias de um homem que viveu coisas perversas, mas que ainda era uma pessoa. É fácil aceitar as palavras de Yourcenar e acreditar que você está lendo os pensamentos de um imperador. O que aparece na página são as memórias de um homem poderoso. Nada parece ficar de fora: há meditações sobre guerras, namoricos, inimigos, amizades, desafios. Tudo soa verdadeiro, tudo parece real. Acho que ninguém chegaria mais perto disso do que ela. Acho incrível que Marguertite Yourcenar não seja mais comentada e lida. Memórias de Adriano é muito poético, mas de uma profundidade honesta, sem artificialidade. Nunca li nada como esse livro.

a força das coisas

O próximo livro da meta foi A Força das Coisas, de Simone de Beauvoir. Nem me lembro de quando li Memórias de uma moça bem-comportada, que é o primeiro desta série autobiográfica. Só lembro que a edição era velha e a leitura foi tocante: me identifiquei e até ri muito com os relatos dela. Um dia encontrei num sebo esse A força das coisas, novinho e por um ótimo preço. Mas desde que li Tête-à-Tête: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre eu peguei um pouco de má vontade com a dupla. Por isso, por achar que se não me forçasse eu demoraria muito para ler novamente alguma coisa de um deles, coloquei na meta do ano A força das coisas. Nele encontramos Beauvoir madura, no alto dos seus cinquenta e poucos anos, e por isso um tanto mais soturna. Eu não consegui repetir o sentimento daquele primeiro livro. As questões políticas discutidas no livro não me impressionaram, Sartre foi a palavra mais repetida página por página, a ponto de eu pegar bronca. Mas ela é a Simone de Beauvoir e apenas ler suas reflexões sobre os romances que escreveu já faz valer a leitura. Eu daria tudo para que todo autor bom tivesse a mesma disposição para revisitar o que escreveu, e nesse volume Beauvoir nos presenteia com isso. Ah, o livro também vale para ver o Brasil pelos olhos dela, já que há muita coisa a respeito de sua visita ao Brasil e as coisas e pessoas que viu por aqui: Jorge Amado, o Rio de Janeiro, Zélia Gattai, Rubem Braga.

evelina frances burney

Na sequência veio Evelina. É o livro que consta na meta para o mês de junho, e eu só terminei por esses dias. Em algum lugar e há muito tempo eu li que Frances Burney era uma das escritoras preferidas de Jane Austen. Daí surgiu esta edição publicada pela Pedrazul. Foi uma das minhas primeiras compras pelo site da editora, há muito tempo, e só agora eu tive a decência de ler. Para quem espera algo parecido com Jane Austen: não espere. Enquanto eu lia Evelina não pude deixar de pensar: ah, sim, por isso que Jane Austen e Charlotte Brontë são tão festejadas até hoje. Elas eram diferentes e seus romances fogem muito do que era padrão. Não é o caso de Evelina. Assim como outros romances da época (a primeira edição é de 1778), esse de Burney tem uma mocinha delicada e de caráter, mas sem voz. O livro não se sustenta fora de seu contexto editorial. É a história de uma moça sem muitos recursos financeiros que se vê enrolada no meio de personagens de má índole. Num mar de gente incivilizada, uma pessoa se destaca: o mocinho. A leitura emperrou um pouco, mas a imersão foi possível, o valor histórico é grande. Evelina me lembrou de A intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, um romance brasileiro que veio ao mundo mais de 100 anos depois. O que fica é o estudo dos costumes, essas coisas. A edição estava um pouco truncada, a diagramação estava difícil, mas vale a pena para entender o contexto que pôde gerar, poucos anos depois, os sensacionais romances de Austen e das Brontë.

Com a missão parcialmente cumprida, eu dou tchau.

Sciuscià é um filme de cortar o coração

vitimas da tormenta

Os meninos Giuseppe Filippucci e Pasquale Maggi engraxam sapatos. A situação econômica não é fácil. Giuseppe ajuda no sustento de casa, diz que o dinheiro não dá para nada. Pasquale já não tem família. Ele costumava dormir no elevador de um prédio, até que o zelador o descobriu e mandou embora. Os dois estão juntando dinheiro para comprar um cavalo. Só conseguem falar disso. Num lance de azar, injustamente, eles são presos e mandados a um reformatório.

Sciuscià, de Vittorio de Sica, é uma história de amadurecimento em meio ao caos do fim da Segunda Guerra na Itália. Na lista dos filmes mais tristes que eu já vi, três são de Vittorio de Sica. Umberto D.apareceu aqui no blog, e, falando com bastante sinceridade, eu nem tenho coragem de rever Ladrões de Bicicleta. Dá para imaginar, então, que o amadurecimento em Sciuscià não se constrói como aquela história feliz de final edificante. O título brasileiro (Vítimas da Tormenta) já entrega tudo. Se o mundo é horrível, amadurecer é ser apresentado a esse horror.

Mas o filme é muito lindo. Sem grandes introduções a gente se vê testemunhando o cotidiano dos meninos. Soltos em Roma, são eles que fazem as próprias regras. Ser criança e pobre nessa cidade não é muito mais que ser pequeno e frágil. Ninguém olha pelos dois. Nos primeiros minutos a vida na cidade acontece ao redor dos meninos. Os adultos andam de um lado a outro. Automóveis passam. Cada um cuida de seus afazeres. Nesse universo, Giuseppe e Pasquale parecem à vontade. A gente chega a pensar que eles sabem se proteger, que andam com desenvoltura entre tanta coisa que pode dar errado. Mas não é verdade: um pouco por inocência, um pouco por não terem nem chance num mundo em que todas as coisas são mais fortes que eles, os meninos vão parar no reformatório. E o reformatório tem toda a hostilidade das ruas de Roma, sem ter nada da liberdade.

Eu tenho que confessar que fui inocente e tive esperança. A coisa mais bonita da primeira metade de Sciuscià é que os meninos se gostam. Eles têm uma amizade verdadeira. Quando Giuseppe recebe um pacote com comida, enviado pela família, tudo o que ele quer é dividi-lo com o amigo que não tem ninguém. Mas o reformatório parece ter regras especialmente moldadas para que cada um cuide de si. A minha esperança de um final minimamente feliz foi embora quando eu percebi que o laço que unia Pasquale e Giuseppe estava ali para ser cortado, e que a principal ideia do filme era que nenhuma pureza vai sobreviver ao mundo. Não tem lugar para a amizade na hora em que é preciso pensar em si, não tem como manter a bondade quando todo o cenário (as instituições, todas essas coisas) está montado numa direção contrária. Em quase uma dezena de cenas de cortar o coração, os meninos vão se afastando até aquele carinho se transformar em inimizade.

O fim é mais trágico e mais cruel do que eu imaginava. Eu tinha me esquecido da desilusão com o ser humano, da revolta diante da pobreza, da falta de sentido da guerra, de todas essas coisas que definem o neo-realismo italiano quando alguém tenta defini-lo. Quando o menino Pasquale, depois de ter sido preso e conseguido fugir, de terem-lhe raspado a cabeça e metido num uniforme, chorou copiosamente e se desesperou, gritando “O que foi que eu fiz, meu Deus? O que foi que eu fiz?”, eu me perguntei se ele havia conseguido, afinal, ver de um ângulo privilegiado o tamanho da miséria em que se encontrava ou se a tristeza era só resignação diante da dor.

Sciuscià não é um filme para rever todo dia.

Dois romances policiais que valem a pena

Uma das minhas primeiras leituras foi um romance da Agatha Christie que eu comprei numa banquinha de revistas. Isso foi em 1997. O livro era Morte no Nilo. Eu só me lembro disso porque ainda guardo o exemplar. Na primeira página escrevi o meu nome completo e a data, com a minha letra ainda infantil, só para atestar que aquele livro era meu (quem tem irmãos mais velhos sabe que é necessário marcar com o nome os objetos mais queridos). De lá para cá eu li uns bons livros dela e do Conan Doyle. Dificilmente passo dois meses sem ler um romance policial. A oferta tem sido muito grande, mas alguns elementos estão em falta.

Sinto que há ondas no mundo editorial. Crepúsculo trouxe consigo uma infinidade de outros romances sobrenaturais. Aos poucos, a chama foi se apagando. Jogos Vorazes veio em seguida e vimos as livrarias inundadas por distopias de variada qualidade. Mas isso já faz tempo. Agora em 2017 quando eu vago o Skoob atrás de novidades e boas histórias, chego a me cansar de ver livros de fantasia young adult e romances policiais das mais variadas origens – tem os escandinavos, tem os ingleses, e tem também, como não poderia deixar de ser, os americanos. O problema é que eles têm muita coisa em comum. Acho que Garota Exemplar, embora não seja um policial no sentido estrito, trouxe uma nova onda de thrillers meio adultos e de temática relativamente pesada. Sob a influência do sucesso do livro de Gillian Flynn, muito do que surge parece ter o mesmo tom.

indesejadas

É muito difícil, nesse mar de livros, nessa verdadeira bola de neve, escolher o que ler. As editoras estão cada vez mais especializadas em nos enganar com capas lindas e sinopses esquivas. Muita coisa parece legal e, se a gente se deixar levar, sai comprando tudo e cai até em crise existencial por não saber o que tirar da prateleira. Eu queria falar sobre dois romances que li recentemente, e que fogem um pouquinho da regra por apresentarem personagens excelentes. Um é Indesejadas, o primeiro da série Fredrika Bergman & Alex Recht, da sueca Kristina Ohlsson. Aqui no Brasil a série vai pelo terceiro livro. Fredrika e Alex são os investigadores da vez. Em Indesejadas eles precisam desvendar um desaparecimento que logo se revela assassinato. Não há muito o que contar sem soltar spoilers. O caso é complicado e de deixar o leitor sentado na ponta do sofá (ou da cadeira, da cama, do que for de preferência). Só que, para mim, o diferencial desse livro é o carisma dos personagens. Os protagonistas são um ponto fundamental. Quando o detetive é ruim, o romance policial parece durar uma eternidade. Não é o caso aqui. Há rixas, ciúmes, desavenças. O livro é longo. São quase 400 páginas, então o foco fica bem dividido entre o crime que precisa ser solucionado e a vida de Alex, Fredrika e Peder. Discórdia entre policiais é um clichê nem sempre bem vindo, mas aqui não há enfrentamentos irritantes. O lugar-comum dá espaço a crises que parecem genuínas. Eu me senti na pele de uma policial ferrada durante a leitura de Indesejadas. Um outro ponto bacana é que em Indesejadas o frio, que obviamente é marca registrada da Escandinávia, sai de cena para a chegada do verão. Não é muito comum sentir calor ao ler um romance sueco.

A garota no gelo

O segundo livro é A Garota no Gelo, que também é o primeiro de vários, dessa vez pelo autor britânico Robert Bryndza. Ele nos apresenta a série da detetive Erika Foster, com dois volumes publicados no Brasil até agora. A detetive está deprimida e acaba de voltar a trabalhar. Seu marido foi morto em uma ação policial que a tinha como comandante. Ela se sente culpada, e todo mundo acha que ela tem culpa mesmo. Atrás de novos ares, ela vai para Londres investigar um assassinato. Um recomeço. Mas não para uma jovem rica que foi achada morta em um bairro decadente. O caso cai nas mãos de Erika. Ela não conhece ninguém da equipe e vai se desentender com muita gente para conseguir juntas as peças. A detetive é chata (mas a gente simpatiza com ela), intransigente e ranzinza: meu tipo preferido de personagem. De novo, como é de praxe, o livro fica bem dividido entre a vida da protagonista e o caso a ser solucionado.

Sempre me alegro quando vejo uma protagonista como Erika, com esse gostinho amargo de rabugice e com brio. Uma pessoa com espírito resistente, mas cheia de manias bizarras. A Fredrika de Indesejadas não fica atrás. Quando elas pegam os assassinos fica aquela sensação de justiça feita e missão cumprida.

É importante que a trama seja intrigante e que as pontas não fiquem soltas, mas isso não é tudo. Eu adoro me apegar aos protagonistas, mas isso tem ficado cada vez mais difícil. Todo personagem parece igual, com tiques, costumes e mensagens parecidos. Esses dois romances que eu destaco não trazem novidades, e para falar a verdade eles têm muito em comum com o bolo de coisas parecidas que a gente encontra nas livrarias, mas, se você é como eu e é capaz de seguir um personagem bom aonde quer que ele vá, vale a pena passar umas horas investigando esses casos esquisitos.