O Regresso: Dois Homens em Conflito… Na Neve

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Coloquei O Regresso na lista dos que eu mais queria assistir em 2016. Muita gente falou do filme e a expectativa era alta por ter Leonardo DiCaprio ainda tentando ganhar o Oscar de melhor ator, e por ter o Alejandro Iñarritu, como diretor, com a possibilidade de levar o prêmio pela segunda vez seguida. Agora uma sinopse completa deve ser quase desnecessária, mas por via das dúvidas eu faço uma curtinha. DiCaprio foi deixado para morrer por Tom Hardy. Tom Hardy também matou o filho de DiCaprio. DiCaprio se arrasta em busca de vingança. Isso numa parte ainda meio sem lei dos Estados Unidos do século XIX.

Se alguém tivesse me convidado para ver um filme com um pé no western, com visual muito bonito, e claramente determinado a atender às exigências do público, no que diz respeito à trama, e da crítica, no que diz respeito às premiações, eu teria assistido, e era bem capaz de ter gostado muito mais do que gostei. Vi e me decepcionei porque ele foi vendido como a última bolacha do pacote, revolucionário, lindo, profundo, diferente.

Nas palavras do Alejandro Iñarritu: “Esse filme merece ser assistido em um templo”.

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“Vai na minha, cara”

Calma. Esse tipo de construção de expectativa, que cria um efeito “paguei para ver uma coisa e acabei recebendo outra” causa muita confusão na minha cabeça, e acho que não estou sozinha. Pior: na maior parte das vezes, isso acontece de propósito. Não são acidentes esses títulos brasileiros bizarros como Entrando Numa Fria Maior Ainda…Com a Família, ou então num exemplo ainda mais absurdo: na esteira do sucesso de Se Beber Não Case, no Brasil, distribuíram um outro filme com Zach Galifianakis como… Se Enlouquecer Não se Apaixone. Poxa vida, isso para o título original Its kind of a funny story, um projeto de outros diretores, sem relação alguma com a comédia que fez explodir a fama de Galifianakis como “aquele gordinho barbudo meio maluco”.

Tudo bem, eles fazem isso pra vender ingresso. Acontece, às vezes, de alguém ir ao cinema perdidinho, e sair achando que foi enganado porque, afinal de contas, Se Beber Não Case não tem nada a ver com Se Enlouquecer Não se Apaixone. Todo mundo que já foi a um cinema já teve que lidar com aquela pessoa ali perto que está completamente perdida, e é comum a gente pensar nessa hora “meu deus, o que é que esse senhor está fazendo aqui? será que alguém o sequestrou para dentro da sala?”.

Acontece. E aí está o meu argumento: não acontece só na tradução. Muitas vezes o filme de um diretor jovem e promissor chega anunciado como comédia romântica boba, ou uma paródia de filme de terror chega como um filme de terror – e aí as pessoas que vão assistir querendo ver o que pagaram, recebem outro negócio e a culpa fica sendo do filme. Porque, claro, a culpa é sempre do filme.

Cada vez mais eu penso que gostar ou não de um filme (ou livro ou música ou série…) depende do ângulo pelo qual a gente está olhando. Eu vejo gente que eu considero e respeito curtir umas coisas que eu acho inaceitáveis. Quando eu vou conversar com elas, ou ler um texto, vejo, às vezes, que elas viram o defeito que eu vi, mas que não lhes pareceu tão grave, ou que relevaram porque isso, isso e aquilo acabaram compensando.

As nossas implicâncias sempre falam muito do lugar de onde a gente está vindo.

E olha, sei que não sou a única, mas não posso negar que implico com o Alejandro Iñarritu. O que acontece com O Regresso, e isso talvez seja só um palpite meu, é que o diretor acredita mesmo que fez uma obra digna de se assistir com reverência (dada a profundidade emocional? poética? espiritual? é isso o que ele quer dizer?), ele não acha que fez só alguma coisa mais ou menos parecida com um western, com visual bonito, e cheia de clichês e fórmulas de roteiro. Mas O Regresso foi vendido inicialmente como um filme diferente e inovador. Inãrritu acha que aquilo ali é profundíssimo. Talvez isso não possa ser medido objetivamente, mas eu não concordo.

Primeiro porque a espiritualidade – que é um elemento importante no enredo – em O Regresso é sempre genérica, indefinida, sem substância, e portanto muito rasa; depois, o filme tem um maniqueísmo típico de blockbuster despretensioso, só que o caso aqui não é esse: Iñarritu passa o filme todo dizendo (nada sutilmente) para você enxergar coisas que ele mal consegue esboçar. E olha que O Regresso chega a 2h30.

Apesar dos esforços bem louváveis de Tom Hardy e DiCaprio, não aparece no texto a grandeza que está na fotografia. E, poxa, isso não é um defeito pequeno num filme que se vê tão grande. Deixa eu dar o exemplo que mais me irritou: é profundo e ao mesmo tempo poético o DiCaprio se enfiar dentro da carcaça de um cavalo para se aquecer, passar a noite lá dentro, e reaparecer pela manhã, como que renascido, numa cena de simbologia tão gritantemente óbvia que é possível enxergá-la à mesma distância em que se vê chegando uma piada ruim?

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Quantos Oscar essa princesa merece?

Agora deixa eu falar da segunda maior raiva que eu passei: será que a sequência que define a participação do personagem de Domhall Gleeson frustou as expectativas de (ou causou surpresa em) alguém? Ou será que qualquer um que tenha passado por, sei lá, qualquer coisa da Marvel ou um anime violento, já não conhece o personagem bem intencionado que pode ou não ser sacrificado para nos fazer passar raiva? Mesmo que isso tenha, de repente, acontecido assim tim-tim-por-tim-tim na história real que inspirou o filme, mesmo assim toda aquela parte fica irritantemente presa a uma fórmula batida.

Claro, tem a pergunta: como espectadores, nós toleramos o clichê? Sim, o tempo todo. Mas pretensão artística não precisa vir acompanhada de desprendimento, inovação, risco? A revista The Economist chamou  Iñarritu de “gênio louco do cinema”. É possível ser um gênio num ambiente totalmente controlado? Não sei. Eu sei que, se eu trabalhasse numa distribuidora brasileira, na hora de lançar o blu-ray, eu tentaria vender O Regresso como um western bonito e nada mais.

P.S. Apesar de ter não ter gostado do filme e nem me empolgado muito com as atuações, torço pelo Leonardo DiCaprio. Quero que ele ganhe logo porque não suporto constrangimento. É capaz de ele perder de novo, e se isso acontecer só vai ficar mais difícil para ele disfarçar a decepção.

Room – O Quarto de Jack

'Room' is a journey out of darkness, director says

Jacob Tremblay e Brie Larson estrelam O Quarto de Jack

O cinema tem uma longa lista de produções célebres que tratam de serial-killers, sequestradores e malucos malvados. Lamentavelmente, a realidade não para de fornecer argumento para filmes que despertam a nossa curiosidade por situações e pessoas extremas. Sabendo disso, logo no trailer, eu já fui com a cara desse Room (O quarto de Jack), dirigido por Lenny Abrahamson. Lá, uma mulher divide o quarto do título com o filhinho. Eles são mantidos em cativeiro pelo sujeito que é pai da criança. Ele raptou esta mulher há 7 anos e Jack, o menino que tem 5, nasceu naquele cômodo e nunca andou pelo mundo.

Isso é muito triste, já aconteceu fora da ficção, e não foi uma vez só. Até onde eu sei, o livro em que Room se baseia não vem de uma história real, embora se inspire levemente no caso de Elisabeth Fritzl e os filhos que ela teve em cativeiro, depois de haver sido raptada pelo próprio pai. Na cidade de Cleveland, nos Estados Unidos, houve um caso parecido: três mulheres passaram anos sob o controle de um demente, que fez uma filha em uma delas e forçou diversos abortos em outra.

Não é difícil perceber que o material com que Room trabalha é horripilante. Muitas vezes nos interessa saber como é que funciona a mente de alguém capaz de conceber um crime assim, e eu acho que essa curiosidade é natural. Agora, o que eu não vejo tanto é uma espécie de caminho oposto. Foi isso o que me fez ir com a cara de Room logo no trailer: tive a impressão de que o filme não se concentraria nos modos de pensar do criminoso maluco – que em Hollywood é visto muitas vezes como perturbado, complexo, inteligente – mas que iria tratar da resiliência e da perseverança da mãe que tenta proteger uma criança num mundo horroroso.

Eu estava certa. Room é meio que uma tentativa de vencer o mal pelo cansaço. O filme não se concentra na asquerosidade do estupro, nem na despersonalização da vítima, e também não faz grandes investidas para ver de perto o sequestrador – embora traços de sua personalidade possam ser entrevistos aqui e ali, quase sempre testemunhados a partir do ponto de vista da criança. Na maior parte da primeira metade, vemos o esforço da mãe para inventar para Jack uma vida menos pior. É comovente ver essas tentativas, que começam sempre em pequenas coisas e acabam em perguntas para as quais ninguém tem resposta – no cativeiro ou fora dele.

Nessas ocasiões duas coisas ficam evidentes: 1) a dinâmica entre a mãe (que, aliás, é vivida por Brie Larson, que concorre ao Oscar pelo papel) e o menino (que é bem capaz de ser o melhor ator mirim que eu já vi) deve ter sido aperfeiçoada e treinada à exaustão, porque os dois mostram aquele tipo de conexão que a gente só vê em uma mãe com um filho mimado ou muito grudado – a intimidade é quase palpável; e 2) algo que deve ter vindo do livro, que eu não li, mas que parece fruto de uma pesquisa grande: os sentimentos e as reações dos personagens são verossímeis, e nesse sentido não há atitudes espetaculares ou muito hollywoodianas.

Quanto a esse segundo item, eu digo que são verossímeis as reações e sentimentos da mãe, do filho e dos outros envolvidos, baseada em três livros que eu aproveito para recomendar. Dois são sobre os sequestros de Cleveland: Esperança, que conta a história de Amanda Berry e Gina DeJesus, e que foi escrito com o apoio de dois jornalistas que acompanharam o caso desde o começo – e Libertadaque conta o ponto de vista da outra vítima do mesmo caso, Michelle Knight; o outro é 3096 dias, que trata do rapto de Natascha Kampusch, uma menina austríaca que sumiu a caminho da escola aos 10 anos e só conseguiu voltar para casa aos 18. Os três livros mostram uma realidade que é muito sombria, sim, extrema e maluca, mas que é muito mais triste e revoltante do que fascinante. Tanto nos Estados Unidos como na Áustria, as meninas foram vítimas de criminosos que não tinham mentes brilhantes: eram homenzinhos de moral distorcida, incapazes de sentir empatia, indivíduos entediantes, desinteressantes, fracos, burros e doentes. As vítimas, por outro lado, não sucumbiram, não se deixaram distorcer.

Por este ângulo, Room é uma atualização da mitologia desse tipo de crime. Uma atualização que, talvez, só tenha sido possível por causa da onda de mulheres fortes que – ainda bem – vem passando pelo cinema comercial nos últimos tempos. Nas explicações que a mãe faz para o filho, durante a primeira metade do filme, fica claro que, enquanto ela tenta explicar o que é o mundo e o que são as coisas, ela também vai reorganizando a própria trajetória, ou seja: ela não compra a versão que o sequestrador criou. Ela é uma pessoa, não foi destruída. Isso é bonito.

A segunda metade do filme (e aqui não vai spoiler nenhum, isto está no trailer) mostra a mãe e o menino fora do cativeiro, ela voltando ao mundo e ele o conhecendo pela primeira vez. Acho que nessa transição mora o aspecto mais interessante da direção – esta é a hora de lembrar que Lenny Abrahamson concorre ao Oscar de melhor diretor e Room ao de melhor filme -, e da fotografia, e aí essas duas partes fazem uma combinação interessante: a fotografia mostra que as mudanças na vida de Jack e sua mãe são abruptas: de tomadas fechadas e detalhes de um cubículo claustrofóbico para um quarto amplo de hospital todo branco, com a luz do dia cobrindo absolutamente tudo, e daí para uma casa grande, cheia de cômodos, com vários ângulos para cada cômodo; enquanto isso, a direção mostra que as mudanças na vida de Jack são sutis: a mãe primeiro o esconde, depois, aos poucos, ele vai aparecendo e interagindo com as primeiras pessoas que conhece: a avó, o novo marido da avó. Quando conhece um cachorro, Jack está no papel de bichinho acuado, que vai vencendo a desconfiança passo a passo.

Tudo isso faz com que Room tenha perspectivas que, se não são exatamente novas, pelo menos não são as costumeiras. Como isso também acontece nos outros dois filmes dirigidos por Lenny Abrahamson que eu vi, Frank e What Richard Didacho que a minha torcida no Oscar, pelo menos até agora, vai para este aqui.

Brooklyn

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Brooklyn tem a cara do Oscar. É só ver um trechinho dele que você encontra ali vários componentes que resultam em indicação. Tem lá uma protagonista em uma história de superação, sem nada de muito estranho, bizarro ou fora da curva. Talvez, em um primeiro momento, o longa não tenha uma história tão angustiante (e inevitavelmente cativante) quanto a do Stephen Hawking de Eddie Redmayne em declínio físico se arrastando pelo chão, mas Brooklyn tem aqueles elementos que levam boa parte do público às lágrimas e fazem a cabeça de quem dá os prêmios. 

Por isso a indicação de Saoirse Ronan como melhor atriz pode parecer meio errada. Ela tem uma atuação comedida, que pode passar sem chamar a atenção, e não investe nas transformações físicas que viraram quase sinônimo de grandes performances. Como eu sempre achei que mais é menos, posso dizer que adorei tanto o filme como a interpretação de Ronan – que eu conheci em Desejo e reparação e mal reconheci aqui,  a ponto de, se eu fosse mais tiazinha, poder dizer que ela já está uma moça. Vale lembrar ainda que Brooklyn tem Nick Hornby concorrendo ao Oscar de melhor roteiro adaptado.

O filme é baseado no livro de mesmo nome, de Colm Toibín, que eu li em 2014 e virou favorito na hora. A adaptação não fica devendo nada, e também entrou para minha lista de favoritos. Acompanhamos uma jovem irlandesa, Eilis Lacey, que se vê sem nenhuma perspectiva de um bom futuro em seu país, na década de 1950. Com uma ajudinha da irmã que mora com ela, e do padre que conhece a família e vive nos Estados Unidos, Eilis consegue embarcar no navio e parar em Nova Iorque. Mais precisamente no Brooklyn. No início a adaptação é difícil, longe da família e dos costumes de casa. Mas quando ela conhece um jovem de família italiana, a paixão faz as coisas ficarem mais fáceis. Quando tudo parece estar se ajeitando (no trabalho, no amor), Eilis recebe uma terrível notícia que a obriga a voltar para a Irlanda provisoriamente.

Brooklyn, num primeiro momento, parece ser mais uma história de amor com um pano de fundo sobre os anos 1950. O filme é tão discreto que pode passar sem deixar marcas por muitas pessoas, mas ele fala muito sobre mudanças. Acho que qualquer pessoa que precisou sair de casa e começar uma nova vida em outra cidade (ou até mesmo em outro bairro, desde que tenha saído de casa) vai se identificar com as questões aborbadas em Brooklyn. Muitas vezes somos forçados a ter que escolher entre o confortável e o difícil, e a Eilis fez justamente isso quando precisou voltar precipitadamente para a Irlanda. Ficar lá, agora que a sua sitação tinha melhorado e as perspectivas não eram as mesmas de quando saiu ou voltar e continuar de onde parou no Brooklyn com seu novo amor?

Aqui, o tom discreto e, de certa maneira, leve foi um atrativo. Eu estava tão acostumada com histórias mais pesadas de imigração que, no começo, achei que essa parecia fraquinha; afinal de contas, Eilis passou por dificuldades, mas nada comparado, por exemplo, ao nazismo.  Essa, no fim das contas, é a história de muita gente, e me fez conseguir imaginar certinho como deve ter sido a trajetória de muitas avós que precisaram mudar de país. Para mim, esse foi o grande mérito do filme.