Coisas que eu li: as biografias de Phil Collins e Rita Lee

A autobiografia vira uma espécie de acerto de contas com o tempo quando o biografado ainda é vivo. Uma figura pública passa a vida inteira ouvindo falar de si. Quando Phil Collins anunciou uma volta aos palcos, há alguns anos, teve até abaixo assinado, com milhares de assinaturas, pedindo que ele não voltasse. Imagina o golpe na autoestima! Imagina se alguém deixaria de responder à altura a um negócio desses. Não que a autobiografia de Collins, Ainda estou vivo, seja uma resposta direta a isso, até porque ela já deveria estar pronta quando a notícia circulou, mas só o fato de que as assinaturas tenham se amontoado já mostra que ele precisava mesmo de um tête a tête com a opinião pública.

Eu leio muito menos biografias do que gostaria. É um gênero delicioso. Eu acho que a graça está em perceber o que se escolhe contar e o que se vai omitir. Nesse sentido, as autobiografias de celebridades pop são um banquete. Além dessa do Phil Collins, em 2018 eu também li a da Rita Lee. Um ponto em comum entre os dois, além de serem músicos para quem eu não dava muita bola, é que havia muita coisa que eles queriam esclarecer, há muito tempo, pelo poder de reescrever a própria história.

Phil Collins foi um monstro dos anos 80. Se você nunca parou para ouvir uma música dele, você deve tê-la ouvido andando mesmo. Ou de carro. Ou de música de fundo numa farmácia. Foi com essa onipresença que ele conquistou uma legião de antifãs. Uma hora a pessoa se dava conta de que ficou ouvindo Phil Collins sem parar por uma década inteira e, pior, de que essa não havia sido uma escolha consciente. É aí que sobe aquela revolta.

Esse acúmulo de antipatias contribuiu para que a carreira dele murchasse nos anos 90, até quase acabar lá pela metade dos 2000. O trabalho a que Ainda estou vivo se presta é desmontar essa imagem de xarope. E a verdade é que, olha, falando como alguém que passou seus dias nos anos 80 colorindo revistinhas e vendo A Ratinha Valente repetidas vezes, eu posso dizer que a empreitada deu certo. Do livro emerge um Phil Collins bacana, engraçado, alguém que deu sorte com as oportunidades e que sabe valorizar os méritos dos outros. Mas e o outro lado? Mas e o que ele deixa de fora?

Bom, eu acho que o sucesso que ele atingiu não condiz com a pouca ambição que ele quer demonstrar. Outra coisa: sabe quando uma história está estranha e você percebe que o problema é a falta de uma parte importante? Então: de repente a primeira esposa do popstar pega pavor dele e o troca por um pintor de paredes. Traído, é ele quem pede desculpas e corre atrás. Qual o problema aí? A tia Fifi aqui responde: ele deve estar escondendo que a coitada já estava cansada de ser traída e resolveu revidar. É evidente. Eu sinto até a tentação de dizer que é elementar.

Agora, para quem esperava muitos insights sobre o processo criativo de Phil Collins no Genesis ou na carreira solo, o livro pode ser um pouco decepcionante. Os anos passam rapidamente. Os álbuns se confundem. Certas mudanças enormes ficam sem explicação.

Coisa parecida aconteceu no livro da Rita Lee. Rita Lee – uma autobiografia é menos profissional, mas isso é um elogio. O de Collins tem começo, meio e fim, ghost-writer, tem mais concisão e é mais equilibrado no tempo que gasta com os períodos da vida/carreira. O da Rita Lee é mais particular, mais fragmentado. É organizado a partir dos afetos e desafetos dela. Ela também trata a carreira de um jeito peculiar, e faz até esforço para diminuir a importância de seu período com os Mutantes. O problema é que esse esforço é tão grande, e ela menospreza os Mutantes com tanta ênfase, que eu me vi obrigada a pensar que aquilo era mais fruto de rancor do que de reflexão. No fim das contas, é uma versão da história que lembra mais um romance autobiográfico do que um guia para fãs que queiram saber mais a respeito de uma trajetória artística importante.

Talvez isso ocorra porque Phil Collins e Rita Lee não eram os centros criativos de seus grupos. De certa forma os dois admitem esse papel de coadjuvante. Collins com mais naturalidade: na carreira solo vai fazer mais sucesso e ter mais controle, então dá para levar o Genesis com leveza; Lee com uma raiva mal dormida: também vai se dar muito bem sozinha, mas nunca perdoou ter sido menosprezada. E deveria perdoar? Não vou entrar no mérito, mas acho que não.

O que emerge dos dois livros são as histórias deliciosas, coisa comum em biografias de gente que viveu no meio artístico. Phil Collins sendo vítima de uma pegadinha de George Harrison, ou invejando o tanquinho de Sting; Rita Lee grávida, presa arbitrariamente, e Arnaldo Baptista, fora de órbita, tentando resgatá-la na carteirada.

Pensando agora, e comparando os dois livros, o de Rita Lee é mais gostoso porque nele a personalidade dela se manifesta mais livremente, com menos mediação. Ela fez questão de recontar sua história para situar lá no passado um período e uma galera de que não gosta, e aos quais ficou ligada aos olhos de todos. O livro do Phil Collins, por mais divertido que seja (apesar da péssima edição brasileira), é um exercício de reposicionamento no mercado. Ele parece um tio com fama de chato que está tentando se enturmar.

Vou terminar deixando uma joiazinha que eu conheci esse ano, da época de Collins no Genesis. A música não é dele, mas ele a interpreta de um jeito que vai lá no coração:

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