Deixei você ir

Deixei você ir

Uma mulher luta para seguir a vida depois de um acidente terrível. Um detetive com problemas familiares se vê às voltas com o caso de um menino morto. Deixei Você Ir, de Clare Mackintosh, é a história de duas pessoas corroídas pelos fatos de um acidente trágico. Em um dia chuvoso o menino Jacob é atropelado por um carro em alta velocidade. O motorista foge do local, deixando o menino morto na rua. A mãe  presenciou tudo. A equipe do detetive Ray Stevens começa a investigar o ocorrido, mas as provas são poucas e parece impossível descobrir quem faria tamanha crueldade. Jenna precisa recomeçar, mas não tem como superar aquela morte. Ela se muda para uma praia isolada, aluga uma cabana e tenta viver.

A sinopse de Deixei você ir entrega um clima de romance policial, mas depois de poucas páginas já notamos que a investigação e a busca pelo assassino não são o ponto crucial da história. Os capítulos são alternados entre a investigação (com lampejos da vida particular do detetive Ray) e o recomeço mais do que complicado de Jenna. O detetive e sua equipe trabalham no caso do atropelamento, mas ele também está com muitos problemas em casa. O filho mais velho está estranho, com alguns problemas na escola; o relacionamento com a esposa também não parece o mesmo, e sua companheira de trabalho, a jovem Kate, parece ser exatamente aquilo que ele precisa para fugir dos problemas.  Dessa forma, a investigação fica permeada pelos dilemas  de Ray e por causa disso, ainda que este seja um recurso comum em romances policiais, aqui vai uma reclamação: achei tudo o que envolvia o detetive bem desinteressante.

As partes de Jenna, pelo contrário, são o ponto alto do livro.  Os capítulos na praia, em que ela tenta começar de novo, me fizeram continuar a leitura. Mas esqueça qualquer resquício de romance policial enquanto a história se concentra nela. O livro vira um romance reflexivo sobre uma mulher e sua vida estilhaçada, alguém que tem poucos amigos e conhece um homem, por quem se apaixona. A primeira metade de Deixei você ir se dá assim. É na segunda parte que acontece uma reviravolta. O livro deixa de ser morno e nos ajuda a entender melhor a personagem de Jenna. Clare Mackintosh me enganou direitinho com um desses recursos que estão na moda nos thrillers de hoje em dia.

Para mim, Deixei você ir não foi uma das melhores leituras do ano, mas está longe de ser maçante. A reviravolta coloca a história inteira sob outra perspectiva, e por causa disso a segunda metade do livro ganha fôlego. Além disso, Mackintosh me fez torcer por Jenna, e isso sempre requer uma dose de identificação não só com a tristeza gerada pela tragédia, mas com os pensamentos que surgem dela.

Deixei você ir intrinseca

Para quem já leu ou para quem quer spoilers

Como eu não consigo me controlar, preciso contar mais dessa segunda metade do romance. Saber de alguns detalhes não atrapalha, mas tem coisa que anula um livro inteiro. Acho que fica impossível ler Deixei você ir sabendo da reviravolta. Seria outra experiência. Fica o aviso.

Jenna passa todos os capítulos da primeira metade do livro se sentindo culpada. Jacob morreu e ela, claro, não consegue lidar com isso. O leitor sabe que a mãe de Jacob não segurou a mão dele ao atravessar a rua, e que ela se culpa por isso. A autora nos induz a acreditar que Jenna é a mãe de Jacob. Por que ela estaria com culpa e precisaria reaprender a viver se não fosse a mãe? Porque ela é a assassina, a atropeladora! No fim, a polícia descobre que o carro que atropelou o menino é de Jenna e a prende. Ela assume toda a responsabilidade, dando um nó na cabeça do leitor (pelo menos na minha, vai que você é mais inteligente e percebeu rapidamente tudo o que acontecia?).

Jenna é uma boa pessoa que tomou más decisões, mas ela tem um motivo. Na segunda metade do livro um novo personagem é inserido. Ian era marido de Jenna, um sujeito abusivo e violento. Ele narra todo o relacionamento dos dois desde que se conheceram. É incrível ver fatos horríveis pelos olhos de uma pessoa que acha normal fazer a namorada engolir água sanitária. Aos poucos nós vamos entendendo por que Jenna se isolou numa cabana no meio do nada e por que ela tem medo de tudo. Ian é violento e está atrás dela. Só aí o livro fica com cara de thriller, só a essa altura entendemos que o tema central da história é a violência doméstica e não as consequências do assassinato do menino Jacob.

Meu único problema com Deixei você ir? Bom, se você ainda não leu o livro e aguentou todos esses spoilers vai aguentar mais este choque: Ian atropelou Jacob enquanto Jenna estava no banco do passageiro. Foi ele. Foi mais uma das vilezas dele. Mas ela assume a culpa, sozinha, pois acha que alguém precisa pagar pelo sofrimento da mãe de Jacob. Eu entendo que uma vítima de violência doméstica pode não conseguir delatar seu agressor por puro medo, mas simplesmente não me caiu bem que Jenna tenha deixado um abusador assassino escapar impune. Achei que esse foi um grande furo, mas isso não estraga o livro.

Precisamos falar sobre o Kevin

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Lionel Shriver é uma das minhas autoras favoritas, e eu ainda não havia lido Precisamos falar sobre o Kevin. Foi esse o romance que celebrizou a escritora norte-americana, mas eu comecei por O mundo pós-aniversário, que me encantou e me fez querer ler tudo o que ela tinha publicado. Adiei Kevin até conseguir encontrar a capa da primeira edição brasileira, aquela que tem um menino usando uma máscara ao mesmo tempo infantil e assustadora, publicada pela Intrínseca. A tradução é de Beth Vieira e Vera Ribeiro.

Eva viajou o mundo todo por conta de seu trabalho: escrever guias com os melhores lugares para se hospedar, comer e conhecer em qualquer país. Gostava do que fazia e continuou viajando, mesmo depois de casada. Franklin, o marido, tinha um trabalho oposto ao dela. Com sua camionete 4×4, ele visitava terrenos que serviriam para locações de uma empresa. Eva e Franklin divergiam no modo de ver a vida, mas mesmo assim eram apaixonados, e depois de um bom tempo tiveram Kevin, o primeiro filho. Eva era uma mulher independente, e não estava preparada para mudar de estilo de vida, mas precisou abdicar das viagens para poder se concentrar em Kevin, um filho por quem ela nunca conseguiu sentir carinho, nem mesmo quando bebê. Franklin se ressentia da falta de amor de Eva por Kevin, e reagiu mimando-o demais.

Eva parece ter sentido a maldade da criança ainda no útero, e Franklin, mais do que amar Kevin, amava a ideia de ter um filho. Ele parecia cultivar acima de tudo a fantasia da família americana perfeita, e por isso não conseguia enxergar as perversidades cada vez mais evidentes da criança. Eles eram ricos, bem educados, podiam pagar as melhores escolas e, ainda assim, eram disfuncionais. Mesmo nascendo em uma família afortunada, Kevin cresceu para se transformar em um assassino em massa.

Lionel Shriver escreveu Precisamos falar sobre o Kevin no começo dos anos 2000, um entre muitos períodos turbulentos da história dos Estados Unidos da América. O romance faz questão de refletir esses tempos de eleições conturbadas, ameaça terrorista, recrudescimento militar, e, no plano doméstico, massacres em escolas. O de Columbine aconteceu em abril de 1999, e ele é citado e contextualizado em Precisamos falar sobre o Kevin. Mas mais do que tratar objetivamente de um fenômeno bizarro como o desses assassinatos, o romance de Shriver é uma investigação psicológica das mentes que geraram esse tipo de tragédia ao mesmo tempo familiar e coletiva.

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Acho que mais do que retratar a história de um assassino inspirada em acontecimentos da vida real, a autora parece querer exibir os problemas de uma nação que  não consegue lidar com seus privilégios de país soberano – ou, numa outra forma de dizer: com seus problemas de país de primeiro mundo. Além de mimado, Kevin é entediado, irônico, cínico. Não consegue tirar prazer das coisas que se espera que uma criança goste, e, nesse sentido, ele parece ser uma continuação de Eva, sua mãe. Ela reluta em abraçar a vida familiar, despreza o sonho americano pelo qual o marido se encanta. Assim como Eric Harris e Dylan Klebold, os assassinos de Columbine, Kevin é o produto de uma desilusão.

Por causa disso, Kevin é a força do livro. Eva é a narradora, e por isso eu achei que minha identificação fosse ficar com ela, mas Lionel Shriver joga o interesse do leitor na direção de Kevin. Ele é uma pessoa ruim, isso fica claro desde o começo, quando Eva narra os primeiros anos de vida do menino que sabemos ser um assassino, mas os questionamentos e as sacadas que o livro consegue fazer se dão através dele. Kevin é um personagem inteiro, muito bem acabado. Sua personalidade é ao mesmo tempo um mistério e uma espécie de buraco negro; quem mais chega perto de desvendá-lo é Eva, e eu, leitora, me sentia a cada página cada vez mais induzida a tentar descobrir que coisas, exatamente, tinham moldado essa personalidade. E adivinha? No caso de Kevin, não há resposta, não há relação direta de causa e efeito. Assim como a mãe, ele é produto de desilusão, apatia e tédio, mas o que o fez percorrer este caminho ao assassinato? Um dos grandes méritos do romance de Lionel Shriver é manter as respostas inconclusivas que encontramos nas histórias reais. Assim como o quarto de Kevin, que a mãe tenta investigar em busca de pistas da personalidade dele, a resposta é um grande vazio.

O formato epistolar do romance me faz pensar que mais do que mandar cartas para o marido, a narradora Eva quer expurgar um pouco da culpa que ela não admite diretamente, mas que está lá, quase palpável, em cada capítulo. É uma culpa ao mesmo tempo individual e coletiva. Quando Eva reclama de seu filho, está falando nesses dois níveis. Franklin, um homem de vida simples e acima de tudo patriótico, ama Kevin incondicionalmente, e prefere não ver os problemas que estão na sua cara. Quando Eva relata as discussões que tinha com o marido por causa de Kevin, sinto que a questão se estende para o próprio país: de um lado o patriótico iludido e do outro o arrogante que desdenha do que tem. O fluxo desses pensamentos chegou a me irritar no começo, e admito que, como todos os acontecimentos estavam no passado, eu sentia que a exposição deles deixava a história menos sedutora. Mas depois da página cem eu fui atropelada por Kevin, e tudo o que eu queria era saber mais e mais da história dessa família. Por isso, nem o dilúvio de considerações da narradora – e suas ponderações que dizem mais respeito à realidade norte-americana – me tirou da história.

Lionel Shriver usa a trajetória de Eva, Kevin e Franklin como um microcosmo do que acontecia com o próprio país, mas isso não significa que a trama em si não é suficiente para envolver quem chega ao livro. Mesmo se deixarmos de lado o contexto e as metáforas, a história dessa família já vale o tempo investido.

O mundo pós-aniversário continua sendo meu livro preferido da Lionel Shriver, mas Kevin é definitivamente um dos melhores personagens que eu já conheci. Fica evidente que a autora fez uma pesquisa enorme para refletir nele as características de uma geração que cresceu com tudo à disposição, mas que ainda assim encontra motivo para sofrer e para avacalhar com tudo.

Depois de Você

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Depois de você é a sequência (e espero que o encerramento) da história de Louisa Clark. Louisa Clark é a protagonista de Como eu era antes de você, de Jojo Moyes. Se você ainda não leu o primeiro livro, preciso avisar que, sim, aqui vai ter spoiler. Mas como eu acho que você deve ter lido, já que chegou aqui, vá em frente e continue sem medo.

Em Como eu era antes de você, Louisa é uma mulher de 26 anos que vive com a família – como acontece na maioria dos livros de autoras do Reino Unido, as famílias nunca são meros coadjuvantes, e sempre têm uma importância ao mesmo tempo cômica e dramática, que acaba responsável por metade do carisma da história. A família é bacana, portanto, mas isso não deixa de ser um problema. Lou ainda não saiu de sua zona de conforto. Por isso, a falta de ambição dessa protagonista é um ponto central para fazer a história andar. Na trama, ela encontra a pessoa que era quase seu exato oposto. Uma pessoa super ambiciosa, e que nunca a conheceria se não estivesse numa situação adversa: Will é tetraplégico e se considera aprisionado em uma vida que não desejava. Quem diria que isso seria o ponto de partida para uma das histórias de amor mais lindas que eu já vi? Jojo Moyes fez todo mundo chorar litros sem aquela apelação típica de um Nicholas Sparks. Pois é, mas não viemos falar do primeiro livro. Eu só precisava registrar o que me encantou em Como eu era antes de você. Lou precisava de uma chacoalhada na vida e a recebeu de onde menos esperava. Ela se apaixonou por Will e ele escolheu o suicídio assistido, para escapar de uma vida que ele considerava insuficiente. O fim, como sabemos, é aquela tristeza.

Em Depois de você, ganhamos uma atualização. Ficamos sabendo que, depois da morte de Will, Lou viajou por algumas cidades da Europa por alguns anos, até se fixar em Londres. No primeiro livro, Lou foi um sopro de felicidade na vida de Will. Agora, ela continua despretensiosa e sem ambição, mas é só olhar mais de perto que você nota que tudo está mais cinza. Claro que já imaginávamos isso, afinal, ela sofreu a perda de um amor. Toda essa melancolia faz com que a Louisa Clark de Depois de você seja muito, mas muito diferente daquela que conhecemos no primeiro livro. Ela está longe de conseguir se restabelecer após a morte de Will. Já se passaram três anos e ela continua em um emprego péssimo, não vê a família direito e passa o tempo sozinha num apartamento praticamente sem mobília. Depois de um acidente, as coisas começam a mudar. Ela retoma o contato com a família, conhece Sam (o interesse romântico dela aqui), Lily (uma garota de 16 anos que praticamente não tem família) e membros de um grupo de ajuda para pessoas em luto.

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Num esforço para dar nova direção à personagem que cativou todo mundo, Jojo Moyes entrega muito daquilo que os leitores esperavam – Louisa no fundo do poço, depois se apaixonando novamente, embora com muita dificuldade em esquecer Will. Tudo isso está lá, competentemente realizado, mas Como eu era antes de você foi um dos livros mais emocionantes que eu já li. E acho que não estou sozinha. Nesse novo livro, no que diz respeito a intensidade, Jojo Moyes não consegue repetir a dose. Diferentemente do primeiro, Depois de você é apenas um livro bom, com uma autora competente.

Nessa atualização não lemos uma história de amor, e sim a de uma mulher precisando se reerguer. O caminho dessa reconstrução não envolve apenas o surgimento de um novo amor, mas o contato com várias pessoas que aparecem, cada uma responsável por colocar no lugar um pedacinho diferente da Lou que a gente aprendeu a gostar. Confesso que não era exatamente isso que eu queria, mas eu sei que esse problema é meu.

Jojo Moyes podia ter nos dado mais do mesmo livro que fez tanto sucesso – eu não me importaria nadinha se esse segundo repetisse em tudo a fórmula do primeiro –  mas ela quis mais. Não bastou escrever o que todo mundo queria ver nas prateleiras, ela quis se afirmar como autora e tentou uma coisa diferente. Meu lado racional sabe que isso é bom, mas meu lado abobado queria mais do mesmo. Eu queria aquele sentimento de novo, aquele aperto no peito, e até o choro. Eu queria que Jojo Moyes desse um jeito de ressuscitar o Will, nem que pra isso ela precisasse se arriscar na ficção científica. Tudo bem, talvez isso seja exagero.

Só que, no fim das contas, tenho que concordar que Jojo Moyes encontrou o melhor final para Lou Clark. Sem poder dar spoiler, digo que senti que a Lou conseguiu, afinal, a tal ambição que ela não tinha, nem antes nem depois de Will. Parece que ela finalmente conseguiu começar a viver e querer mais da vida. Depois de gostar tanto de uma história, de passar por tantas coisas com aqueles personagens, eu fico me sentindo meio dona deles. Agora é torcer para o filme, que vai sair em breve, ser tão bom quanto o livro para que eu possa matar as saudades.