Um balanço final da primeira temporada de The Deuce

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Teria sido frustrante se a HBO não houvesse confirmado uma segunda temporada de The Deuce. Isso porque a série teve a ambição de construir um quadro enorme do mercado do sexo na Nova York dos anos 1970, e porque este quadro mal começou a ganhar vida. Ao mesmo tempo, como ninguém é bobo, a primeira temporada acabou sendo uma história completa – pouco ficaria em aberto se mais episódios não fossem encomendados.

The Deuce ganhou elogios de veículos especializados e já saiu com a expectativa lá no alto por causa do renome de seus criadores. David Simon é o sujeito por trás de The Wire. George Pelecanos, além de ter trabalhado em The Wire, é um reconhecido autor de romances policiais. Richard Price, um dos produtores executivos, foi responsável por The Night Of e também é um romancista importante. No elenco estão James Franco e Maggie Gyllenhaal, além de um monte de rostos conhecidos para quem viu qualquer coisa nos últimos quinze anos.

Ainda assim – e como acontece com frequência – o burburinho não durou muito. A série não é daquelas de colocar a internet inteira em colapso quando alguma coisa vai acontecer. Pelo que eu vi a recepção no Brasil foi meio morna. The Deuce não pegou de jeito aquele pessoal que é louco por séries, nem entusiasmou bastante a turma cinéfila. Da minha parte, ah, eu achei que fosse me entusiasmar mais. Acho que houve algumas concessões bobas ao que se pensa ser o gosto do público. Vou tentar explicar.

Um exemplo é o arco de Eileen, interpretada por Maggie Gyllenhaal. Talvez em tempo de tela não dê para perceber o tamanho da centralidade da personagem dela, mas é ela quem conduz tudo. As mulheres de The Deuce estão ou em conflito para perceber que um novo lugar no mundo é possível, ou em luta para construir este novo lugar. Eileen é uma prostituta que não tem cafetão. Os cafetões exploram as meninas, sob a desculpa de protegê-las, mas Eileen não é o perfil comum de uma prostituta. Ao longo dos oito episódios a gente descobre que ela apelou para a prostituição para fugir de um pai repressivo, mas que vem de uma família mais abastada que as das demais. Nas ruas ela corre tanto perigo quanto as outras mas, diferentemente das outras, resolveu administrar sozinha o que ganha e como trabalha. Eileen é bem resolvida com sua sexualidade. É madura, liberada, inteligente, conhece bem o próprio corpo. Acontece que o ambiente de trabalho é muito, muito insalubre. Não é de espantar que algumas meninas queiram proteção. Ela apanha de mais de um cliente, o perigo vem como que em escalada. O fim da década de 1970 é um dos períodos mais violentos da história de Nova York. A polícia não liga se algum maluco enforca, esfaqueia ou estripa uma garota de programa. A situação fica insustentável e Eileen precisa parar de trabalhar. Por sorte os tempos estão mudando e, por competência, ela consegue se envolver num negócio que só vai crescer: o cinema pornográfico.

Não tenho nem como negar que isso é muito legal. Eileen é uma personagem central porque serve como símbolo da mudança dos tempos. Na juventude ela foi reprimida pelas limitações sociais, os tabus sexuais a marginalizaram – com uma revolução nos costumes ela vai encontrar seu lugar. A princípio Eileen fica na frente das câmeras, transando, mas depois ela começa a usar a criatividade e mostrar que é capaz, e aí a oportunidade surge. Quando a temporada termina ela já está dirigindo seu primeiro filme, um pouco por acaso e um pouco por obstinação. Para mim isso é quase um modelo de arco. Ela foi do ponto A ao B e tudo se encaixa com o grande panorama histórico. Onde estão as concessões bobas? Na hora de colocar essa jornada na tela.

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O roteiro traz uma personagem cheia de complexidades, mas ao mesmo tempo quer contar essa história como se estivesse falando com uma criança, como se The Deuce fosse um telefilme edificante. Um exemplo pontual está numa cena do último capítulo. O lugar é um set de filmagens. Maggie Gyllenhaal está usando meias 7/8 e um robe de seda. Eileen está pronta para rodar sua próxima cena. Mas o telefone toca. Uma assistente atende. O diretor não vai conseguir chegar a tempo. O que resta a fazer a não ser ir para casa? Mais do que obstinada, Eileen parece predestinada a assumir aquela posição: já que o diretor não vem, quem dirige sou eu. Faz sentido? Na vida real, eu não tenho dúvida nenhuma de que uma atriz pornô consiga dirigir um filme. Eu sei que isso acontece bastante. Muitas atrizes juntam dinheiro e abrem suas próprias companhias com o objetivo de ter controle sobre tudo o que fazem ou de ganhar dinheiro ao produzir conteúdo num meio que já conhecem. Só que The Deuce tratou esse processo de um jeito simplificador em excesso. O set é grande. Há um assistente de iluminação, uma contra-regra, vários atores, cenário, figurino, dinheiro envolvido: tudo isso para uma pessoa com zero experiência tomar as regras só porque se dispôs a aprender fazendo. O desenrolar da cena não é só inverossímil para qualquer um que já tenha trabalhado com qualquer coisa: ele também é feito com o máximo apego a fórmulas muito conhecidas de quem acompanha, por exemplo, o Supercine. Eileen compreende o trabalho do diretor, dá pitaco na direção de arte, trabalha o lado psicológico das atrizes menos experientes. Maggie Gyllenhaal faz tudo isso com a sutileza de um trator: cara de boazinha, cara de compreensiva, cara de quem está exercitando a criatividade.

Seria legal ver mais novidades em uma série com as pretensões de The Deuce. A sensação de déjà vu também bate forte quando se acompanha alguns dos personagens secundários: a jovem rica que largou a faculdade para virar garçonete, desafiar os pais e viver a “vida real”; a prostituta sonhadora que lê e vê filmes entre um programa e outro; o trabalhador assalariado que se encanta com as possibilidades da vida do crime; o trabalhador honesto que se vê seduzido pela máfia ao reafirmar sua masculinidade; o casal gay em crise porque um tem mais reservas que o outro a respeito de demonstrar intimidade em público e sair do armário. De novo: tenho certeza de que essas pessoas existem na vida real, mas acho que não precisamos vê-las no cinema e na tevê, para sempre, sob as mesmas luzes.

Mas todo esse didatismo não chega a estragar a série, que tem um fio condutor bem interessante. No fim das contas, o antagonista principal em The Deuce é o homem que contrata prostitutas. Ele aparece pouco, mas é a escrotidão em forma de criatura. Mais vil que os cafetões, mais hipócrita que os mafiosos e policiais, muito mais problemático que as prostitutas, o homem que contrata prostitutas é quem as submete à violência, quem solicita o sexo e quem as reprime por terem fornecido aquilo que ele solicitou. Trocando em miúdos: em The Deuce o homem que contrata é o símbolo de uma doença social. Ele vai ferrar todo mundo porque quer sexo, ele vai fazer de tudo para esconder suas preferências, ele vai pagar o que for preciso para ter o que quer. Quando a sociedade e a tecnologia permitem que essa obsessão seja levada adiante sob a proteção da privacidade é que surge a milionária pornografia moderna.

(Eu não sei se essas hipóteses correspondem exatamente à realidade, mas não custa lembrar que o Brasil, por exemplo, é ao mesmo tempo o país que mais mata transexuais e o que mais consome pornografia trans.)

De qualquer forma, em The Deuce os personagens servem para levar uma tese adiante: a de que uma revolução nos costumes e na tecnologia tirou o sexo pago das ruas e o levou para dentro das casas. Às vezes essa tese chega até a gente de um jeito meio simplista e quadradinho, mas o resultado final é bom. O tema fica mais e mais interessante na medida em que a gente conhece mais ângulos, e isso não é um feito que toda série consegue realizar. Pelo jeito a segunda temporada vai querer investigar se essas grandes mudanças na indústria do sexo e na sociedade serão necessariamente boas.

P.S.1: A recriação da época, em cenários e figurinos, está impecável.

P.S.2: Eu não sei julgar se James Franco é bom ator, mas eu adoro a participação dele em The Deuce. Ele faz irmãos gêmeos: um é malandro, o outro é ainda mais malandro. Os dois só se beneficiam do jeito canastrão de Franco.

Você não precisa de um guia para acompanhar Star Trek: Discovery

Si Vis Pacem, Para Bellum

Você estará perdendo uma das estreias mais gostosinhas de 2017 se, por algum motivo, não estiver acompanhando Star Trek: Discovery. Se o seu motivo for preguiça de ter que se inteirar a respeito de mais de 50 anos de conteúdo, preguiça de ter que começar lá de trás e ficar em dia com todas as séries e filmes e ainda ler uns livros, eu tenho uma novidade boa: não precisa, deixa isso pra lá. Foi o que eu fiz e está dando certo até agora.

Sei que há todo um exército de fãs que me desprezariam por dizer que acompanhar uma série de tevê não requer prática nem habilidade, mas também sei que televisão é sempre um produto feito para o máximo possível de consumidores. Acho que esse é o conceito maior por trás da produção de Discovery. Claro que eles precisam justificar a série como um componente da franquia Star Trek, mas eles também precisam fazê-la sobreviver num ambiente muito competitivo que oferece novidades semanalmente em vários segmentos.

Toda vez que eu me lembro disso, fico com muita raiva de sites ou cadernos de cultura que oferecem guias ou verdadeiros cursos para quem quer começar essa ou aquela franquia. Já falei disso aqui no blog quando saiu Star Wars: The Force Awakens. Evidente que ter mais informação é quase sempre melhor do que ter menos, mas há veículos de mídia que precisam que a gente se intimide para que eles possam justificar sua existência e há, também, muitos fãs que tomam para si aquilo que amam e não querem que ninguém encoste naquele objeto precioso que os ajuda a moldar sua identidade. Isso é um porre e eu sei que toda mulher que já se meteu a tratar de cultura pop já se viu na situação de ter que provar que é tão apaixonada por aquilo quanto o nerdão que sentou em cima e não quer levantar de jeito nenhum. Pior que isso: provar sua paixão não deveria ser pré-condição para nada, porque não é sinal de hipocrisia conhecer superficialmente alguma coisa (a não ser que você seja um neurocirurgião falando de cérebro, ou algo assim). Pelo contrário: é sinal de que você conheceu, se engajou ou não, e andou para frente. Nem todo mundo se apaixona perdidamente pelas mesmas coisas.

Discovery tem sido uma surpresa para mim. Como eu disse, achei que não valia o esforço de fazer uma pós-graduação lato sensu para entender o que estava acontecendo na tela, mas me dispus a ver o piloto, vi o segundo e o terceiro episódios com um pé atrás e agora, desde mais ou menos o sétimo, ando achando que a série vai entrar na minha lista de favoritos do ano. Todas as referências à série clássica ou às derivadas são laterais, quer dizer: elas não atrapalham a linha principal e o desenvolvimento da história, nem o entrelaçamento da trama. Dá para começar do zero com Discovery. Mas isso a gente percebe nos primeiros cinco minutos do piloto. O que me fez querer acompanhar para valer foi a evolução episódio a episódio.

Os produtores optaram por um caminho arriscado. O capítulo inicial e o segundo, que foram ao ar no mesmo dia, contaram praticamente uma história de origem da personagem principal. Michael Burnham é vivida por Sonequa Martin-Green – e ela, a atriz, era uma das razões a me deixar com um pé atrás: é que a personagem dela em The Walking Dead era chatíssima, fazendo tudo num tom ridiculamente dramático. Mas já no terceiro capítulo de Discovery Martin-Green me fez esquecer de TWD. Eu mordi minha língua e vi que ela é razão de, sei lá, quase metade do sucesso até agora. Michael Burnham deixou de ser chata, outros personagens rapidamente ganharam importância e o trem andou. Jason Isaacs, que interpreta o capitão Gabriel Lorca, por exemplo, tem sido o grande ator da série. Ele consegue parecer louco, dissimulado, simpático, leal, desleal, inteligente e inconsequente ao mesmo tempo. E nem tudo está nos roteiros, muita coisa vem do trabalho do ator. Saru, o oficial de alta patente que é de uma espécie esquisitíssima, é interpretado por Doug Jones, outro desses atores que se mostram capazes de carregar uma série nas costas. Tilly (Mary Wiseman), a melhor amiga da protagonista, deu muito certo como um complemento bastante humano ao jeito necessariamente frio de Burnham.

Tudo isso me faz pensar que o seriado está muito legal, e legal para quem gosta de televisão, de ver série enquanto come bolacha, não só necessariamente pra quem é fã de longa data de uma marca importante. Quando alguém fizer um daqueles textos do tipo “tudo o que você precisa para começar Tal Franquia” eu quero me lembrar de responder que preciso de um sofá, tempo livre e/ou do dinheiro para o ingresso.

Mindhunter é uma das melhores séries que a Netflix já fez

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As décadas de 1990 e 2000 foram muito boas para quem gosta de filmes de serial killers. O Silêncio dos Inocentes ganhou o Oscar de melhor filme em 1991 e cimentou esse filão do suspense. Depois disso surgiram muitas produções com resultados variados e, ultimamente, a fórmula tem mostrado cansaço. O diretor David Fincher estreou no gênero com Seven, em 1995, depois fez o meu preferido, Zodíaco, em 2007, e agora leva Mindhunter à Netflix.

A televisão americana tem uma quedinha especial por mistério e por quem-matou-fulano-de-tal e, para tentar combinações diferentes, inventou de tudo (inclusive o serial killer condicionado a só matar quem merece morrer). Por isso é muito legal perceber que Mindhunter consegue trazer muito daquilo que a gente conhece, de um ponto de vista ligeiramente diferente (que é o que todo mundo quer fazer), mas sem enfiar os dois pés na jaca.

A história é, como acontece com frequência, a de um agente do FBI. Até aí não há novidade. Acontece que esse agente não quer necessariamente desvendar um caso especial e intrigante. O que ele faz é estudar o crime como um fenômeno maior. É esse ponto de vista que abre todas as sacadas legais de Mindhunter, e o que permite esse ângulo é o material original. A série foi baseada num livro de John E. Douglas e Mark Olshaker. Douglas é um ex-agente do FBI, a carreira e as descobertas dele são as inspirações para o personagem principal. Ele trabalhava no bureau bem na época em que o grande público e as instituições foram obrigados a tentar entender o que significavam os assassinatos em série – uma coisa talvez tão antiga quanto a roda, mas um conceito relativamente novo àquela altura.

O ano é 1977. Os americanos ainda estão perplexos com os crimes do Filho de Sam, um serial killer que dizia agir sob os comandos de um cachorro falante. A reconstrução de época que Mindhunter faz não serve só para que a gente sinta o clima do final da década de 1970. O próprio conceito de serial killer vai sendo apresentado aos poucos, sempre em confronto com a época e com as pessoas que então tentavam entender e combater o crime. O Filho de Sam não era o único, e as pessoas tinham a sensação de que o mundo ia ficando mais e mais difícil de se compreender.

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Essa recriação é fantástica. Para quem acompanha o noticiário em 2017, para quem viu a penca de suspenses lançados desde O Silêncio dos Inocentes, a importância, por exemplo, de perfilar um criminoso pode parecer óbvia. O trabalho de Mindhunter é demonstrar como é que essa obviedade se estabeleceu. Ao mesmo tempo, não há só a questão de dar nome a um crime antigo, ou de entender a mente dos seres humanos capazes de cometer as maiores e mais assassinas maluquices. A série parece dizer que, com a mudança dos tempos, também mudou o tipo de loucura que se precisa enfrentar.

Nesse sentido, Mindhunter é de apavorar. Há um diálogo constante entre o choque representado pela novidade de cada crime, lá em 1977, e a nossa incapacidade, em 2017, de ver qualquer atrocidade como novidade. A escalada dessa loucura coletiva é o principal tema da série. O personagem central, vivido por Jonathan Groff, parece não se abalar com o que vê. A princípio ele entrevista psicopatas e reflete sobre a natureza do que eles fazem em nome de nada além de sua própria ascensão profissional. Só depois ele vai perceber o verdadeiro peso daquilo com que está lidando. Nessa hora o espectador é convidado a se espantar de novo com a violência e a desumanidade, a sair de um certo estado de torpor.

Eu não tenho nem vergonha de dizer que terminei os 10 episódios dessa primeira temporada de Mindhunter no fim de semana de seu lançamento. Acho que David Fincher e companhia entregaram uma das melhores coisas que a Netflix já fez. Vi algumas pessoas reclamando de lentidão ou falta de objetividade, mas acho que essas críticas não valem quando uma série tenta ver em detalhes um panorama tão grande. Além disso, seria difícil pensar em um elenco melhor do que o que Mindhunter tem, com destaque para Anna Torv (aquela de Fringe) e Holt McCallany (que eu não conhecia de nome).

Não sei se uma segunda temporada já está garantida, mas até me empolgo com o que ela tem a apresentar. Na vida real, John E. Douglas entrevistou Ted Bundy, Charles Manson, O Filho de Sam, John Wayne Gacy, Richard Speck, Edmund Kemper e vários outros. Até agora, dessa lista só apareceram Speck e Kemper. E quem chegou até o final sabe o efeito que esses dois tiveram nas vidas dos personagens principais. Agora é esperar.

Mr. Mercedes é legal?

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2017 está sendo um bom ano para o bolso de Stephen King. Tem It e A Torre Negra nos cinemas, tem O Nevoeiro, que saiu para a televisão em junho, além de Mr. Mercedes que estreou em agosto. Tenho certeza de que a conta não para aí. Deve haver alguma coisa perdida lá no primeiro semestre – boa sorte para quem for fazer a lista completa das adaptações de King para todas as mídias. Eu não posso dizer que criei uma relação especial com o autor, nem que conheço tudo o que ele fez de cabo a rabo. Lembro que comecei por It. Muito tempo depois veio Novembro de 63. E agora em 2017 eu li Mr. Mercedes sem saber que uma série de tevê estava a caminho. Acho que fiquei levemente desapontada. Não me encantei, mas terminei a leitura. Sabe o que isso quer dizer? Quer dizer que eu estou apta a ser a pessoa insuportável que viu Mr. Mercedes, a série, e ficou comparando com o que acontecia (e como acontecia) no livro. Só que nesse quesito tudo deu certo. O espírito do romance está todo na tela. O que é que deu errado, se é que algo deu errado?

O tal Sr. Mercedes é um assassino em massa que conseguiu escapar. Ninguém sabe seu verdadeiro nome. Em 2008, no auge da última grande crise econômica americana, ele atropelou mais de uma dezena de pessoas numa fila para conseguir emprego, com um Mercedes Benz roubado. Muita gente morreu. O detetive Bill Hodges ficou obcecado com o caso e perdeu uma parte da sanidade, teve que se aposentar. Nos dias atuais, encontramos Bill em modo autodestrutivo, desgostoso da vida, viúvo, numa casa bagunçada, sem fazer a barba e bebendo a qualquer hora do dia. O que vai tirá-lo desse torpor é a vaidade do Sr. Mercedes. O assassino não se contentou com o anonimato: ele quer fazer joguinhos, quer brincar com a cabeça do velho detetive e começa a se corresponder com ele. A perseguição recomeça, mas o ritmo de Bill não é lá essas coisas.

Há muitas pontos legais nos quatro episódios que eu vi. Qualquer um que tenha assistido a um filme americano lançado nos últimos dez anos vai poder identificar, em Mr. Mercedes, aquela desolação bem característica das obras que retrataram o pior da crise e suas consequências de longa duração. Carros velhos, interiores arruinados, personagens aguentando pequenas e grandes humilhações pela preservação de empregos sufocantes, vizinhanças depauperadas. Esses elementos dispensam diálogos explicativos: está na cara que todo mundo empobreceu, que a vida urbana nessas condições convida à paranoia e à alienação, que o mundo é uma máquina de moer gente.

Esse recado foi dado com a ajuda, ainda por cima, de um elenco muito bom. Do detetive ao assassino, todos mantém Mr. Mercedes naquele nível em que a gente consegue levar o que está acontecendo a sério. Deixa eu dar um exemplo. Harry Treadaway, o ator que faz o assassino, poderia ter ido muito mal – e isso nem é spoiler já que nós, o público, descobrimos sua identidade logo no piloto – pois a tarefa dele era bem complicada. O Sr. Mercedes é um homem, no fim dos 20 ou começo dos 30 (agora eu não me lembro se isso foi especificado, mas não mais de 35), que tem um trabalho chatíssimo e pouco recompensador, uma mãe com muitos probleminhas, e um porão trancado à chave em que ninguém pode entrar. No porão não há uma coleção de cadáveres nem de mulheres sequestradas, mas um monte de computadores, luzinhas piscando, aparelhinhos sobre os quais ninguém explica nada, paredes pintadas de preto. Tudo isso para dizer que o Sr. Mercedes não é só um louco que entrou num carro e teve vontade de passar por cima dos outros – ele também é um competentíssimo hacker. Não há computador ou sistema de segurança que esteja a salvo de um cara como ele. Qual é o problema? Bom, a gente sabe que o cinema (e a televisão, por consequência) tem certa dificuldade com a figura do hacker.

Primeiro porque a habilidade de um hacker, num roteiro que precisa de um hacker habilidoso, sempre acaba se transformando em um elemento mágico. É um recurso excelente porque resolve pontos complicados. Se você pergunta qual é a origem da renda do hacker, a resposta dirá que ele hackeou um banco. Se você pergunta como é que ele conseguiu invadir uma prisão de segurança máxima, a resposta dirá que ele hackeou o sistema de segurança e abriu todas as portas. O hacker descobre os podres dos inimigos sem mover uma palha, apaga arquivos que precisam sumir e todas essas coisas. Pior do que isso: quando os estúdios escalam atores para interpretar hackers, a regra é a afetação e não é difícil que tudo termine em constrangimento. Do ponto de vista de Harry Treadway, então, o personagem já era complicado porque o roteiro incluía todos esses cacoetes identificados com quem mexe com computadores e, ainda para ajudar, o Sr. Mercedes tinha que parecer um psicopata que transa com a própria mãe mas passa abaixo do radar daqueles que não prestam atenção, ou seja: tinha que parecer uma pessoa comum. O resultado final não é ruim. O Sr. Mercedes de Treadway é cínico, raivoso, passivo-agressivo; da aparência normal, com um rosto quase bonitinho, ele vai para uma expressão quase monstruosa e claramente perturbada. Tem cara de hacker, tem cara de funcionário de loja de informática, mas também tem cara de assassino atropelador, stalkeador vingativo, manipulador sem piedade. Não é nada que vá levar o ator a um monte de premiações, mas poderia ter sido bem pior.

mr. mercedes

Só que esses pontos positivos não conseguiram me segurar em Mr. Mercedes. O problema principal é uma insistência em fazer tudo dentro do convencional, com mínima dose de surpresa. Mr. Mercedes usa sem moderação alguns dos recursos mais chatos e velhos da tevê. Para reforçar o ponto de vista do detetive e estabelecer no público uma identificação com ele, qualquer outro personagem precisa subestimá-lo: ninguém acredita no que o velho Bill fala, seu ex-colega nem quer ouvi-lo, os vizinhos são inacessíveis mesmo quando estão do lado dele; quando ele tem razão, os outros dão uma volta imensa para dizer que ele está errado – a ideia é que nos irritemos com a burocracia da polícia e o desinteresse do mundo, mas o descompasso soa forçado e inverossímil porque é mal escrito, todo esquemático. Muitas coisas acontecem porque têm que acontecer, a série tem vícios que parecem ter saído direto dos anos 1980, sem qualquer adaptação. Um exemplo é o romance que o detetive Bill engata com uma mulher bem mais jovem. Pessoas de diferentes idades se apaixonam desde sempre, tudo bem, mas qualquer romance que vá ocupar tempo de tela, desviando o espectador daquilo que é o centro da história, precisa acontecer depois que a gente tenha conseguido entender o que é que leva uma pessoa a se interessar por outra, não é? O que é que levou essa mulher jovem, rica e bonita a se interessar por um senhor autodestrutivo e decadente, desinteressado e bem longe de irrestível? Ela pode ser uma dessas mulheres com uma queda por tipos assim. Pode ser que ela queria consertá-lo (o que é um clichê chatíssimo, mas beleza), sei lá, ela pode ter qualquer razão: Mr. Mercedes não apresentou sequer uma. O que ganhamos, portanto, é um romance que aconteceu porque o roteiro quis que acontecesse e uma personagem sem vida própria: ela dá conselhos, oferece cama, mesa e banho, é bonita (é a Mary-Louise Parker) e só.

Depois da paixão que ninguém conseguiu explicar eu não tive mais paciência para continuar acompanhando, mas, para falar a verdade, acho que a irritação com os defeitos de Mr. Mercedes depende mais das coisas que estão no repertório de quem está assistindo. Eu tive minha cota de detetives angustiados e mulheres mal escritas, geralmente aos sábados no Supercine, e por isso para mim as coisas não funcionaram lá muito bem, mas Mr. Mercedes não é horrível. É uma história de conflito de gerações, de um velho que mal sabe usar o computador contra um jovem que só consegue viver porque tem uma tela entre ele e o resto do mundo, ambos muito deslocados, um a serviço do mal e o outro ali tentando consertar as coisas.

 

Twin Peaks chega ao auge com 25 anos de atraso

twin peaks 2017

A polícia encontrou a cabeça de uma mulher, logo identificada como Ruth Davenport, num apartamentinho bem organizado, em uma vizinhança pacata da cidade de Buckhorn, na Carolina do Sul. Lá também foi encontrado um corpo, que não era o de Ruth, mas o de um homem não-identificado. Enquanto isso, Dale Cooper, agente do FBI, está preso em outra dimensão desde 1991. Ele tenta voltar para esta dimensão, a nossa, mas parece que seu lugar aqui está sendo ocupado por um doppelganger sinistro, que construiu uma carreira de assassinatos e maldade. Em Nova York, um bilionário anônimo conduz um experimento em que um rapaz precisa vigiar, sem pausa, uma cabine de vidro.

Esse cenário é armado no primeiro episódio da volta de Twin Peaks. Dali em diante acontecem bizarrices numa velocidade que a gente não vê todo dia na televisão. Tem um monte de personagens, pelo menos três cidades, histórias antigas que ganharam argumentos novos e histórias totalmente novas que vão precisar, de algum jeito, encontrar uma ligação com tudo o que quem viu as temporadas velhas conhece. Mark Frost e David Lynch vão amarrar todas essas pontas soltas? Duvido que isso esteja nos planos.

Eu rodei a internet atrás de gente falando de Twin Peaks e vi que as pessoas estão bem divididas. A profusão de personagens e histórias paralelas incomoda uma parte do público. Outra parcela está inquieta com a lentidão com que se desenrolam os plots principais. Há quem deteste Dougie Jones e os que até estavam gostando mas acham que já deu. Outra parcela é a daqueles que estão achando tudo lindo. Nesta eu me incluo.

Acho que a terceira temporada caminha para ser a melhor até agora. Muita gente superestima a dificuldade de acompanhar a série, mas não dá para negar que algumas coisas são confusas. São confusas de propósito, diz o fã mais entusiasmado. E com razão, mas convenhamos que este é um argumento um pouco preguiçoso, se ele for parar aí. Geralmente essa discussão desanda em alguém dizendo que a trama é complexa, picotada, não-linear, que há mensagens subliminares e que o sentido final só será acessível a quem conseguir enxergar todas as camadas e juntar as peças. Disso eu discordo. Eu acho que o que Twin Peaks quer afirmar já foi posto há muito tempo, e é algo do tipo: o mal é um espírito capaz de possuir qualquer pessoa, e assim todo tipo de maldade vem do mesmo lugar mas se manifesta de maneiras diferentes; o bem é como uma plantinha frágil que deve ser cultivada; tanto o bem como o mal têm uma carga de ridículo que às vezes só pode ser encarada na base da piada.

Acho que todas as cenas valiosas de Twin Peaks reforçam uma dessas três afirmações ou alguma combinação delas, mesmo que um detalhe fora de lugar ou uma perspectiva bizarra tente levar a nossa atenção numa direção diferente. Tem uma cena do episódio mais recente (até agora foram 11 nesta terceira temporada) que serve como exemplo.

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Bobby Briggs era um traste. Foi um dos primeiros suspeitos no caso do assassinato de Laura Palmer porque era um rapazinho metido a bad boy, chato, alguém que não falava coisa com coisa e vivia mascando chiclete. Eles foram namorados e Laura recorria a ele para conseguir cocaína. Quando começa a primeira temporada, Bobby vive no limite da marginalidade apesar de ainda frequentar o high-school e viver com os pais. Na série antiga ele não teve um desenvolvimento para além disso, apesar de algumas pistas lá pelo final da segunda temporada. Mas agora, em sua primeira aparição na temporada três, vinte e cinco anos depois, vemos que ele virou um policial sério e membro respeitável da comunidade de Twin Peaks. Só que são muitos personagens. Bobby surge já policial no episódio quatro, sem qualquer explicação, e depois não se ouve nada (ou quase nada, pode ser que a minha memória me engane) a respeito dele.

Shelly Johnson foi quem teve mais tempo de tela ao lado de Bobby, lá nos anos 1990, quando os dois formavam um casal de pilantras. Ela era uma garçonete meio inocente e meio trambiqueira, vítima de violência doméstica. Shelly também apareceu pouco nessa volta de Twin Peaks, mas dela sabemos mais. Agora ela tem uma filha já adulta e continua trabalhando no mesmo restaurante. O reencontro de Shelly e Bobby era aguardado pois as informações estavam incompletas. A filha dela era filha de Bobby? Os dois não estavam mais juntos? E é aí que entra a cena especial que eu estou tentando usar como exemplo.

Becky, a filha de Shelly, é um pouco instável. Ela vive com o marido num trailer horroroso. Os dois cultivam aquele tipo de relacionamento que só vai dar muito errado porque ninguém se ajuda. A certa altura do episódio onze, a filha mete a mãe no meio de sua confusão conjugal (descontrolada, aos gritos, sem pudor de causar preocupação). Acaba que Becky sai no rastro do marido e, não o encontrando, atira várias vezes contra a porta de um apartamento em que ela pensava que ele se escondia. É no meio da confusão que descobrimos que Bobby (agora policial, agora alguém com quem se pode contar) é, sim, o pai da filha de Shelly.

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A cena começa como uma intervenção. Bobby (aquele mesmo Bobby que não era digno de confiança) é o pai aflito. Shelly (aquela que era irresponsável e volúvel) está com lágrimas nos olhos. A filha diz que perdeu o controle, que isso não vai acontecer mais, que odeia o marido, que ama o marido, que não vai pagar pelo prejuízo que causou, que não teria dinheiro para isso; e aí os pais, cada um de um jeito, claramente separados, se dispõem a ajudar com dinheiro. O tom é de bronca, mas não parece ser a primeira vez que uma conversa dessas se faz necessária. Um novo namorado de Shelly surge na janela. Bobby fica claramente arrasado, é óbvio que ele ainda a ama. A filha sabe disso. Toda a sequência tem muito mais informação que diálogo. Ficamos sabendo muito da personalidade de Becky, descobrimos que Bobby ainda ama Shelly, que Shelly já partiu para outra, que Norma (a patroa, aquela velha amiga) não concorda com as decisões de sua funcionária mais antiga. Logo saberemos que Bobby virou quase completamente o oposto daquilo que era. Um tiro atravessa a janela do restaurante e todo mundo entra em desespero. Treinado, Bobby toma a dianteira, empunha a arma e vai para a rua investigar o que aconteceu, com aquela pose de policial em alerta. O costume de quem já viu mais de uma série de tevê me levou a crer que havia alguma conspiração em jogo, que aquele tiro resultaria num tiroteio, que aquilo não terminaria ali e seria mais uma peça a se encaixar no quadro geral.

Mas o que se desenrolou foi um desses momentos bizarros de Twin Peaks em que a tragédia parece uma coisa totalmente besta, mas nem por isso menos horrível. Aconteceu que um menininho disparou sem querer a arma do pai, de dentro de um carro. O carro parou, começou um engarrafamento. A mãe do menino está em pânico, indignada com o marido por ele ter deixado que uma coisa dessas acontecesse. Bobby vai até eles. A câmera o acompanha. A criança que mexeu na arma tem o ar de um monstrinho possuído e encara Bobby com raiva. As buzinas não param, mas um carro, em especial, faz mais barulho que os outros. A sequência é montada para causar tensão: eu achei que Bobby fosse morrer, que alguma coisa iria explodir, que algum tipo de monstro fosse pular na tela. Mas não. O que acontece é que Bobby vai até o carro que buzina sem parar e ouve o sermão de uma mulher descontrolada: ela está atrasada, isso não poderia ter acontecido. A mulher está naquele desespero comum às pessoas que se deixaram levar pela infelicidade cotidiana, mas até ali o desespero é assustador e até que patético. Só que a câmera segue os olhos de Bobby para dentro do carro. Num cantinho escuro tem uma forma a se mexer, a forma é um menino, o menino está tendo um tipo de ataque e começa a soltar uma gosma pela boca. Não é bem vômito. Não tem o impulso do vômito. É mais uma gosma mesmo, como se alguém tivesse aberto um furinho por onde sai um líquido pegajoso.

episódio 11 twin peaks

E aí a sequência acaba. Foi apavorante e, ao mesmo tempo, bem familiar. O mal é horrível, muito comum, ataca sem aviso e não tem, necessariamente, explicação ou conexão com alguma ordem maior. O bem é uma coisa frágil a ser cultivada. É Bobby Briggs – bully, peso-morto, golpista, desgosto da família – quem agora tenta organizar toda a bagunça.

Eu acho que Twin Peaks vem contando a mesma história em todos os seus episódios, mas também acho que vai ser covardia não encaixar pelo menos algumas peças. O que talvez já dê para dizer é o seguinte: a primeira temporada, que foi infinitamente melhor que a segunda, não tinha a regularidade e a imensidão de recursos (os recursos visuais e artísticos, os atores muito bons, a liberdade absoluta) que essa terceira temporada vem mostrando. Para mim, Twin Peaks chegou a seu auge com 25 anos de atraso.