Mindhunter é uma das melhores séries que a Netflix já fez

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As décadas de 1990 e 2000 foram muito boas para quem gosta de filmes de serial killers. O Silêncio dos Inocentes ganhou o Oscar de melhor filme em 1991 e cimentou esse filão do suspense. Depois disso surgiram muitas produções com resultados variados e, ultimamente, a fórmula tem mostrado cansaço. O diretor David Fincher estreou no gênero com Seven, em 1995, depois fez o meu preferido, Zodíaco, em 2007, e agora leva Mindhunter à Netflix.

A televisão americana tem uma quedinha especial por mistério e por quem-matou-fulano-de-tal e, para tentar combinações diferentes, inventou de tudo (inclusive o serial killer condicionado a só matar quem merece morrer). Por isso é muito legal perceber que Mindhunter consegue trazer muito daquilo que a gente conhece, de um ponto de vista ligeiramente diferente (que é o que todo mundo quer fazer), mas sem enfiar os dois pés na jaca.

A história é, como acontece com frequência, a de um agente do FBI. Até aí não há novidade. Acontece que esse agente não quer necessariamente desvendar um caso especial e intrigante. O que ele faz é estudar o crime como um fenômeno maior. É esse ponto de vista que abre todas as sacadas legais de Mindhunter, e o que permite esse ângulo é o material original. A série foi baseada num livro de John E. Douglas e Mark Olshaker. Douglas é um ex-agente do FBI, a carreira e as descobertas dele são as inspirações para o personagem principal. Ele trabalhava no bureau bem na época em que o grande público e as instituições foram obrigados a tentar entender o que significavam os assassinatos em série – uma coisa talvez tão antiga quanto a roda, mas um conceito relativamente novo àquela altura.

O ano é 1977. Os americanos ainda estão perplexos com os crimes do Filho de Sam, um serial killer que dizia agir sob os comandos de um cachorro falante. A reconstrução de época que Mindhunter faz não serve só para que a gente sinta o clima do final da década de 1970. O próprio conceito de serial killer vai sendo apresentado aos poucos, sempre em confronto com a época e com as pessoas que então tentavam entender e combater o crime. O Filho de Sam não era o único, e as pessoas tinham a sensação de que o mundo ia ficando mais e mais difícil de se compreender.

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Essa recriação é fantástica. Para quem acompanha o noticiário em 2017, para quem viu a penca de suspenses lançados desde O Silêncio dos Inocentes, a importância, por exemplo, de perfilar um criminoso pode parecer óbvia. O trabalho de Mindhunter é demonstrar como é que essa obviedade se estabeleceu. Ao mesmo tempo, não há só a questão de dar nome a um crime antigo, ou de entender a mente dos seres humanos capazes de cometer as maiores e mais assassinas maluquices. A série parece dizer que, com a mudança dos tempos, também mudou o tipo de loucura que se precisa enfrentar.

Nesse sentido, Mindhunter é de apavorar. Há um diálogo constante entre o choque representado pela novidade de cada crime, lá em 1977, e a nossa incapacidade, em 2017, de ver qualquer atrocidade como novidade. A escalada dessa loucura coletiva é o principal tema da série. O personagem central, vivido por Jonathan Groff, parece não se abalar com o que vê. A princípio ele entrevista psicopatas e reflete sobre a natureza do que eles fazem em nome de nada além de sua própria ascensão profissional. Só depois ele vai perceber o verdadeiro peso daquilo com que está lidando. Nessa hora o espectador é convidado a se espantar de novo com a violência e a desumanidade, a sair de um certo estado de torpor.

Eu não tenho nem vergonha de dizer que terminei os 10 episódios dessa primeira temporada de Mindhunter no fim de semana de seu lançamento. Acho que David Fincher e companhia entregaram uma das melhores coisas que a Netflix já fez. Vi algumas pessoas reclamando de lentidão ou falta de objetividade, mas acho que essas críticas não valem quando uma série tenta ver em detalhes um panorama tão grande. Além disso, seria difícil pensar em um elenco melhor do que o que Mindhunter tem, com destaque para Anna Torv (aquela de Fringe) e Holt McCallany (que eu não conhecia de nome).

Não sei se uma segunda temporada já está garantida, mas até me empolgo com o que ela tem a apresentar. Na vida real, John E. Douglas entrevistou Ted Bundy, Charles Manson, O Filho de Sam, John Wayne Gacy, Richard Speck, Edmund Kemper e vários outros. Até agora, dessa lista só apareceram Speck e Kemper. E quem chegou até o final sabe o efeito que esses dois tiveram nas vidas dos personagens principais. Agora é esperar.

Agosto pt. 2: The Night Of, O.J. Simpson, Minha Luta, Pedrazul, outras coisas menos nobres: de volta à programação normal.

Posso começar de onde parei? Não posso. Antes de entrar nas leituras do mês preciso terminar algumas coisas que eu deixei em aberto.

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Raspei o cabelo, agora sou malvadão

Nos últimos dias de julho eu falei sobre The Night Of, a série da HBO que está com final de temporada marcado para o próximo domingo. Eu disse, entre outras coisas, que o protagonista tinha uma super cara de bonzinho, e que, abre aspas para uma Talita um mês mais jovem, menos vivida e menos maltratada pela vida: “o seriado ainda não deu material suficiente para que se especule sobre os motivos do crime, ou sobre as motivações dos personagens principais, mas o pano de fundo político leva a imaginação longe”.

Pois é. Àquela altura eu tinha visto três episódios. O problema é que agora a cara de bonzinho do protagonista foi embora, porque a série decidiu que ele deveria virar meio bandidinho dentro da cadeia. Essa transição foi um pouco sem pé nem cabeça, apesar de, a princípio, fazer muito sentido. Faltando um episódio para o fim, pode ser que Naz seja o culpado e não tenha havido transformação nenhuma, ainda assim em The Night Of a sutileza é zero.  A tese é: por mais que alguém entre na cadeia como um inocente, jamais sairá de lá sem que tenha virado culpado de alguma coisa. Tudo bem, mas a gente sabe que ninguém vive de tese no mundo do entretenimento. Eu tive certa dose de razão em dizer que a cara de bonzinho não estava ali à toa, mas o que a gente conseguiu com a transformação em termos de complexidade? Bem pouquinho. A série tem roupagem e dinheiro de tevê de primeira, mas o espírito vai esbarrando mais e mais no policial rasteiro. Triste.

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Mais triste ainda é O.J.: Made in America, um documentário em cinco partes sobre a vida, a carreira e os assassinatos de O.J. Simpson. A parte boa é que o documentário é triste, mas é excelente. No começo do ano eu vi o piloto de American Crime Story: The People v. O.J. Simpson, aquela com o Cuba Gooding Jr. Fiquei com muita vontade de gostar, mas não deu. Até senti inveja de quem acompanhou com entusiasmo. A série ficcional acabou ganhando prêmios e tudo. Só que O.J.: Made in America é o melhor documentário em partes que eu já vi. Faz Making a Murderer parecer um trabalho de faculdade com cartolina e fita crepe. O seriado monta parte a parte o tamanho da relevância do caso para a questão racial norte-americana, ainda vê o crime em detalhes (sem nenhuma apelação ou queda pela morbidez) e esmiúça a personalidade de O.J. Simpson desde os tempos da faculdade até a véspera de sua prisão em 2008. No total são 450 minutos, e não dá para dizer que um deles foi mau gasto. Eu tinha até colocado um livro sobre o caso entre as minhas próximas leituras, mas acho que vou deixar para depois, tamanho o grau de complexidade dessa série documental.

Num plot twist de sangue de barata e falta de seriedade, por causa de O.J.: Made in America eu acabei revendo Corra que a polícia vem aí 33 e 1/3. Disso eu falei no texto anterior, não foi? Pois bem. Havendo tirado as séries de tevê do caminho, vamos às leituras.

Tem sido um mês de começos. O livro de agosto da meta dos 12 livros do ano é Um outro amor, o segundo volume da série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård. Não cheguei nem na metade, mas devo terminar essa semana. Assim como todos os outros da meta de 12, vai ter resenha aqui. Posso dizer que esse segundo me animou mais do que o primeiro, mas vamos com calma. Também comecei Missoula, de Jon Krakauer, aquele livro que causou certo furor por tratar de uma onda de estupros numa cidade universitária dos Estados Unidos. Eu não pretendia escrever sobre ele, mas o livro é tão bom e tão cheio de argumentos que vai ser difícil deixar de fazê-lo.

A editora Pedrazul está tendo um 2016 espetacular, e pelo jeito eles são meio incansáveis. Eu comprei a edição deles de Esposas e Filhas, da Elizabeth Gaskell e, sério, o livro é muito lindo, rechonchudo, recheado. Quer dizer: é enorme, e eu mal comecei, pouco avancei, e ainda vai levar um tempinho. Mas a gana que eu tive para comprá-lo ainda está em mim para a hora de lê-lo. De onde estou, consigo enxergá-lo na estante e ele que me espere.

Um que eu terminei por esses dias, em ebook, foi Vocação para o mal, de Robert Galbraith, que todo mundo sabe que é a J.K. Rowling. Eu fico um pouco angustiada com isso, já que, poxa, todo mundo sabe agora. Qual é a do nome diferente? Como alguém que não andou no trem de Harry Potter a tempo mas andou um pouquinho, digo que, se Rowling estiver escrevendo romance policial sob outra alcunha com medo de arranhar sua reputação de autora milionária de série de sucesso comercial incomparável, ela pode ficar tranquila que o detetive Cormoran Strike e sua assistente Robin Ellacott – uma sidekick chamada Robin; boa sacada, hein – são dois dos melhores personagens que ela já fez. Vocação para o mal, ainda por cima, é o melhor dos três romances de Galbraith/Rowling até agora. O casal está mais shippável do que nunca (não Galbraith e Rowling, eu falo de Cormoran e Robin), os personagens parecem mais confortáveis porque já ganharam bastante estofo. Para quem chegou até aqui, Cormoran e Robin já têm vida, já dá para encarar uma situação e imaginar o que um dos dois faria diante dela. Espero que um quarto livro chegue logo, e acho que deve chegar porque, pelo jeito, J.K. Rowling não dorme.

claire contrerasFalando em ebook, eu terminei ainda Kaleidoscope Hearts, um romance new adult, de Claire Contreras, com um chove-não-molha irritante. O cara larga a moça, a moça toca a vida e fica noiva de outro, o noivo morre, aquele primeiro cara se reaproxima. Ele correndo atrás, ela se fazendo de difícil. Não posso dizer que esse livro me elevou espiritualmente, mas nada tenho a esconder, ok? Ok.

take me for grantedEm Take Me for Granted, de K.A. Linde, o bonitão é vocalista de uma banda daquelas que tocam em barzinho e em festa de universidade. Todas o amam, e ele nem aí pra ninguém, só querendo transar e passar para a próxima. Isso porque ele ainda não conheceu nossa mocinha que tem açúcar nas calcinhas. Quando ele a conhece e ela o ignora, pronto: ele se apaixona caninamente (como na frase “ficar como um cachorro atrás de alguém…”). Para falar a verdade, as situações nesse livro eram tão repetitivas que eu realmente não me lembro do que me fez terminar a leitura. Acho que não fui eu, acho que Pazuzu leu no meu lugar.

This-is-War-Baby-This is War, Baby, de K. Webster, era o que mais prometia. Começou de um jeito inusitado. A guria foi raptada pelo vizinho bonitão, com quem flertava inocentemente, e ele quase a matou. Ela ficou trancafiada num quartinho, sofreu as mais terríveis humilhações. O livro tem algumas cenas muito fortes, humilhações sexuais de revirar o estômago. Até que, claro, o mocinho aparece. Um cara obsessivo-compulsivo e germofóbico que compra a nossa protagonista num leilão (pois é, o cara malvadão raptou ela pra vender num leilão e toda a humilhação sexual grotesca era parte de um tipo de treinamento). Então, pois é, o mocinho comprou a mocinha num leilão frequentado por predadores sexuais. Ele é doido, portanto? Não. Ele é bonzinho. Ele não quer maltratá-la. Nesse ponto a história perde a graça. O começo foi bem bizarro e diferente, mas o fim trouxe a mesma coisa de sempre. Não tenho vontade de ler a continuação.

Acabei. Poxa, foi preciso recapitular tudo isso (no post anterior e neste) para conseguir perceber que eu não tinha visto ou lido nada digno de um texto inteiro. Quer dizer: na verdade todas essas coisas são dignas, sim, de um texto inteiro. Eu é que não tirei material para um texto inteiro de nada dessas coisas. Mas esse foi um formatinho muito gostoso de usar para não deixar a peteca cair. Aviso aos meus poucos e bons (e excelsos, divinos, sublimes, e TOPS!) leitores que nos próximos dias voltaremos à programação normal.

Um de nós: livro-reportagem sobre o maior atentado terrorista da Noruega

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A figura central de Um de Nós é um homem que buscou a notoriedade como pichador, depois quis ser empresário de sucesso, trambiqueiro de sucesso, liderança partidária, líder de guilda em World of Warcraft e escritor de ensaio político. Fracassou com mais ou menos intensidade em cada uma dessas tentativas e foi dar certo na coisa mais abominável de que se tem notícia, o assassinato em massa.

Em Um de Nós (Editora Record, tradução de Kristin Lie Garrubo) Åsne Seierstad trata do atentado duplo que aconteceu na Noruega, em 2011. Oito pessoas morreram em uma explosão, no prédio em que trabalhava o primeiro ministro norueguês, e sessenta e nove a tiros, numa ilhota em que acontecia a convenção da juventude do partido no poder. Anders Breivik, então com 32 anos, além de ter preparado meticulosamente os crimes, escreveu um manifesto de ultra-direita em que culpava a esquerda norueguesa pela islamização de seu país, condenava o multiculturalismo, denunciava o marxismo cultural e sentenciava suas vítimas à morte por entender que haviam sofrido lavagem cerebral da esquerda e que, mortos, não poderiam entregar a Noruega aos imigrantes e aos não-cristãos. Breivik deve ter procurado a definição de terrorismo num dicionário de norueguês e a seguiu ponto a ponto. Ele infligiu medo através da violência para fins políticos.

Ou pelo menos essa era a história que ele queria contar. O grande mérito de Åsne Seierstad em Um de Nós é nunca comprá-la por inteiro. Não é que ela negue o terror nos atos de Breivik, o que Seierstad faz é questionar duas coisas: (1) a visão que Breivik tem de si, e que tentou transmitir ao mundo e (2) a necessidade de o terrorista aparecer como o protagonista dessa história.

Para isso, Seierstad começa do começo. Ela jamais percorre os caminhos que o assassino programou. Em vez de discutir imigração, ela escolhe a dedo as vítimas que serão personagens principais do livro: Bano, uma menina de origem curda, cuja família se refugiou na Noruega e trabalhou em silêncio para conseguir se integrar e viver uma vida de classe média; Simon, um rapaz de família norueguesa, um dos melhores quadros da juventude trabalhista, professor voluntário, jovem palestrante, admirador de Obama e partidário da integração e do acolhimento de imigrantes. Os dois morrem pelas mãos de Breivik, mas Seierstad vê de perto suas vidas, com a intenção de não despersonalizá-los. Em vez de fixar o quadro geral, o que permitiria a extremistas verem com bons olhos as ações de Breivik, ela se aproxima de personagens para não perder de vista a dimensão humana da tragédia.

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O assassino também é visto em muitos detalhes, desde a infância. O homem que emerge, em vez do terrorista corajoso e heroico cuidadosamente esculpido por Breivik, tem problemas de autoestima e socialização. Extremamente vaidoso, faz cirurgias plásticas, implante no cabelo, musculação, e se declara metrossexual. Não consegue se integrar, os poucos amigos o consideram cada vez mais esquisito. Desesperado por atenção, ele busca sucesso e fama. Para Seierstad, mais do que dar um forte golpe na esquerda norueguesa e impedir a islamização do país, Breivik queria ser visto, admirado e estudado. Seria contraditório perceber essas intenções e ainda assim escrever um livro desse tamanho sobre esse sujeito, mas o Breivik que Seierstad perfila é patético. Atormentado por seu próprio senso de importância, com voz fina, sem talento e sem vocação, o assassino é mais um homenzinho pequeno e assexuado, e enlouqueceu porque jogou videogame demais e ficou frustrado demais por não ter as coisas que achava serem suas por direito. O problema é que isso às vezes resulta bastante unidimensional e acaba não sendo capaz de dar conta da complexidade dos acontecimentos.

Quando a autora consegue expor as verdadeiras razões por trás dos atos do terrorista, o que vem à superfície é a brutalidade e a falta de sentido dos atentados de 2011. A partir desse ponto, Breivik não é mais protagonista. Para que isso pudesse acontecer, Seierstad elaborou uma teia que, aí sim, permite que o leitor tenha uma visão panorâmica da sociedade norueguesa. Um de nós quer sugerir que toda aquela violência não precisou ser gestada fora do país.

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Quem quer que tenha escolhido Riz Ahmed para ser Naz, o protagonista de The Night Of, o fez consciente de que escalava os dois maiores olhos-de-cachorro-pidão da história recente da televisão. Eu me pego pensando nessa escolha quando tento elaborar minhas teorias sobre o que está acontecendo na série nova da HBO, que a essa altura está no terceiro episódio.

No piloto, Naz saiu de casa numa sexta à noite e para isso teve que pegar, escondido, o táxi em que o pai trabalha. Antes de chegar à festa, conheceu uma garota, eles foram à casa dela, transaram. Corta para ele despertando sozinho numa cozinha que não conhece. Ele sobe as escadas, se veste ao pé da cama, e vai acordá-la para dizer que está indo embora. Ela não responde. Ele acende o abajur e vê que tem sangue por tudo. Ela está morta. Ele foge. Depois, dirá que se desesperou e não soube agir.

The Night Of é um seriado de crime com detetive, advogados, tribunais, cadeia. Nada disso empolga pela originalidade, à primeira vista, mas a produção tem suas vantagens. A começar pelo orçamento, que permite uma fotografia bonita, bons atores, e aquela direção ambiciosa que caracteriza algumas coisas da HBO. O seriado ainda não deu material suficiente para que se especule sobre os motivos do crime, ou sobre as motivações dos personagens principais, mas o pano de fundo político leva a imaginação longe.

Naz é filho de imigrantes paquistaneses. Os pais são batalhadores de classe baixa, ele é excelente aluno. A família muçulmana faz o possível para passar abaixo do radar, e aí acontece esse crime horrível. Naz está no centro dos acontecimentos e todo o esforço que eles fizeram para não chamar atenção é esmagado pela enxurrada de visibilidade que um caso como esse atrai. Aos olhos de todo o mundo, um monstrinho muçulmano trucidou uma menina americana de vinte e dois anos. De certa forma o julgamento já foi feito, e agora todos ao redor vão pagar pelo crime. Só quem não se precipita em afirmar com toda a certeza que Naz é um assassino frio é quem tem contato com ele e pode ver que ele é um garoto americano como tantos, apegado à família e empenhado em se adequar.

tumblr_oakwfaoq4x1sbdg0wo1_250The Night Of é baseado na primeira temporada de Criminal Justice, da BBC, mas talvez não valha a pena buscar pistas da produção americana na inglesa. Não vi a original, mas logo de cara não me parece que uma transcrição ao pé da letra seja possível. The Night Of parece bem preocupado em tratar de temas americanos, e seus personagens, lugares e tumblr_oakwfaoq4x1sbdg0wo4_250conflitos lembram bem aquela Nova Iorque que a gente conhece através dos filmes dos anos 1990. O tema, porém, reflete totalmente as preocupações americanas após o 11 de setembro.

E é por isso que eu fico pensando nos olhos inocentes de Naz. O resultado seria o mesmo, qualquer que fosse a aparência de um filho de imigrantes acusado de matar uma moça americana branca: ele viraria um monstro. No terceiro episódio a imprensa já pergunta à promotoria se Naz tem relação com grupos terroristas, e mesmo que ele seja cidadão americano, tanto ele quanto a família precisam responder a todo momento quem são e de onde vêm. Só que mesmo depois de três episódios, nós, o público, ainda não sabemos muito sobre o suposto assassino. Ele não tem cara de bandido, como diz o detetive, mas ainda é cedo para comprar inteiramente aquele ar de fragilidade e inocência. Afinal de contas, tudo o coloca na cena do crime. Apenas o perfil e a palavra dele o tiram de lá.

Por outro lado, eu não acho que a HBO correria o risco de tratar de um tema tão delicado se fosse para chegar ao final com a descoberta de que aquele menino pintado como um monstro é realmente um monstro. Acho que é uma complicação indesejada para uma série de tevê, coisa que depende tanto da repercussão do público. Eles teriam que dizer: viu, nem todo muçulmano é um monstro, mas este aqui em particular é um monstro apesar dos olhos bonzinhos. Não acho que seja o caso. Acho que a série tem o objetivo de mostrar que o sistema criminal não está bem preparado para tratar de quem não se encaixa, mas…

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Nesse caso, escolher um protagonista com tanta cara de inocente só dificultaria o trabalho de todo mundo e, pior, entregaria o ouro muito rapidamente. Portanto, das duas uma: ou Naz tem cara de bonzinho porque é mesmo um menino inocente e vai sofrer o pão que o diabo amassou (o que é meio previsível e brochante para quem assiste), ou ele é um lobo em pele de cordeiro. Se ele for culpado, a série vai ter que se esforçar bastante para evitar justo aquela superficialidade que tenta criticar, e aí pode chegar num resultado interessante.

Faço todo esse exercício inútil de futurologia só para registrar que estou completamente perdida. Comecei o segundo episódio sem ter ideia do que aconteceria, e, vendo televisão, essa é uma experiência que eu adoro. Será que eu esqueci de alguma coisa? Sim. The Night Of ainda tem o John Turturro, no papel de um advogado de porta-de-cadeia com um eczema no pé.

True Story

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Jonah Hill é Michael Finkel e James Franco é Christian Longo. True Story é mesmo uma história verdadeira. Qualquer filme sobre assassinos psicóticos me interessa. Jonah Hill e James Franco não seriam minha escolha para um drama policial, mas como não sou cineasta e não mando em nada, aceitei os dois e assisti torcendo para que o filme fosse tão bom quanto Zodíaco (pois é, Zodíaco é a minha medida de comparação para filmes assim).

Finkel é um jornalista mentiroso que gosta de dar um jeitinho para que uma matéria fique exatamente como ele precisa que fique. Isso até poderia ser normal se ele não desfrutasse de uma ótima fama e popularidade, e não trabalhasse no jornal mais reconhecido no mundo, o The New York Times. Depois de uma escorregada grande e uma mentira pouco inocente, Finkel perde o emprego e a notoriedade. De um grande jornalista, ele vira apenas um desempregado sem credibilidade. É neste momento que Christian Longo surge em sua vida. Longo estava foragido, e foi encontrado no México. Ele havia assumido uma nova identidade: dizia ser Michael Finkel, jornalista do NYT. Por conta dessa esquisitice, Finkel vai atrás de Christian. Depois de algumas visitas ao presídio, e sabendo um pouco mais da história de Longo, um laço se estabelece. Christian Longo está sendo acusado de matar a mulher e os três filhos. Ninguém acredita em sua inocência, e é nisso que Michael Finkel se agarra. Ele se identifica com o assassino, que assim como ele está sendo crucificado por algo que diz não ter feito. Além do mais, ele precisa acreditar na versão de Longo pois vê nessa história uma segunda chance. Pois é, esse motivo poderia até convencer, mas acabou ficando um pouco fraco. Pareceu uma coisa meio “o nome da minha mãe também é Martha”.

Deixando isso de lado, o que mais me empolgou em True Story foi o clima de drama policial dos anos noventa. Pode ser que isso seja motivo para uma pessoa desistir de um filme, mas para mim isso o transforma em algo especial, porque eu, afinal, já consumi muito Supercine. A ideia de unir uma história de crime com jornalismo pode entendiar também, de tanto que já foi usada, mas acho que o diretor – Rupert Goold, que eu não conhecia – tem sucesso em deixar o espectador preso até o último minuto, mesmo sem muito suspense e nenhum susto. Outro ponto positivo foi a surpresa da personagem da Felicity Jones, que faz a esposa do Jonah Hill. Quando ela visita o assassino no presídio, eu senti que estava sendo enganada e que aquele filme ali ia enveredar por um caminho muito comum: o clichê do bandido sedutor que consegue manipular todos os que estão em volta. Foi o contrário, e mesmo não sendo nada de mais eu vibrei por dentro. É muito bom achar que já entendeu tudo e então receber uma surpresa positiva.

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Ainda assim True Story não chegou a me entusiasmar, por um motivo em especial. O James Franco é muito difícil de engolir. Não me entenda mal, eu o adoro, e assisti um bom número de filmes e até mesmo uma série (Freak and Geeks, que é ótima!) com ele. Mas acho que nunca tinha parado para pensar que quase todos os filmes que eu vi com Franco no elenco eram comédias ou dramas românticos. Foi complicado acompanhar True Story e ver naquele maluco um homem que assassinou a família. Quando ele queria falar sério ou parecer misterioso, eu ficava pensando que, na próxima cena, ele iria sacar um cigarro de maconha e falar uma asneira nonsense. Em momentos como esse eu percebo que atuação é pelo menos metade de um filme. Eu me pegava pensando, por exemplo, que o Paul Dano seria uma boa opção, mas de novo, não sou cineasta e não mando em nada. No cinema, não é nenhuma novidade que um ator muito preso a um gênero tenha sucesso em outros, mas Franco parece levar a esse papel que era para ser sério, enigmático, cheio de nuances, aquela mesma cara apática e chapada que ele levou ao Oscar que ele apresentou ao lado da Anne Hathaway. Já Jonah Hill apresenta aquela versatilidade que não é novidade nenhuma para quem viu O Lobo de Wall Street.

True Story não é um dos melhores filmes sobre assassinos e casos de assassinato, mas mesmo assim pode valer a sua atenção, se você gosta de coisas como Zodíaco, que eu já citei, As Duas Faces de um Crime, ou de qualquer longa com Denzel Washington. O andamento aqui é um pouco devagar, o diretor foge do ritmo de thriller, mas a lentidão de True Story em nenhum momento atrapalha, acho até que só nos deixa mais curiosos. Por isso, a falta de sustos e de ação faz com que ele consiga se destacar num mar de filmes que se sustentam nas cenas finais com muito pânico e pavor. Para mim, esse filme quis ser uma reflexão sobre a verdade e a honestidade, mas ele precisava acreditar um pouquinho mais em suas próprias qualidades para ser memorável.

Making a Murderer

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Uma evidência de DNA tira da cadeia um homem injustamente condenado por estupro. Steven Avery cumpriu 18 anos de pena por um crime que não cometeu. Essa história, sozinha, já é capaz de colocar muita gente em frente à televisão. Só que Making a Murderer, que chegou à Netflix recentemente, é uma série documental tão cheia de reviravoltas, e trata de um caso tão intrincado e complexo, que defini-la acaba se tornando uma tarefa muito complicada. Pior que isso: se é difícil dizer do que a série trata em 140 caracteres, ter uma opinião sólida a respeito do caso, depois dos 10 capítulos cada um com quase uma hora, é quase impossível.

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Steven jovem na sua primeira condenação

Vale a pena dizer, logo no começo, que se você deixar de ver Making a Murderer vai perder uma das coisas mais interessantes que a Netflix já fez em seu esforço para dominar o mercado de streaming e tirar, de vez, a televisão do aparelho de televisão. A Netflix tinha produzido documentários sobre temas tão distintos como o mercado americano de pornografia e a vida da cantora Nina Simone, mas, pelo menos entre as coisas que eu pude acompanhar, ainda não tinha feito nada tão absolutamente televisivo. Deixa eu me explicar: Making a Murderer tem aquela cara de produção de TV a cabo, dessas que você esbarra na tarde de um feriado e que te fazem ficar pensando: “meu deus, americano é tudo maluco, olha o tipo desse crime”.

Você pode ter certeza de que alguma coisa perto dessa última afirmação vai passar pela sua cabeça. A série começa com Steven Avery saindo da prisão em 2003. Exames possibilitados por novas tecnologias conseguem colocar outro homem na cena do crime: o espancamento e  estupro de uma mulher, Penny Beerntsen, em 1985. Fica comprovado que Steven não foi o responsável no caso de Penny, e ele sai da prisão abraçado por parentes e amigos, e com a benção da opinião pública. Mas o departamento de polícia da cidadezinha em que a família de Steven morou a vida inteira não tem nada a comemorar. Seja por negligência, incompetência ou mesmo má fé, os policiais passaram longe dos procedimentos e métodos recomendáveis para lidar com o caso em questão. Assim, logo após deixar a prisão, o antigo réu processa o estado.

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Esse é o ponto de partida e o lugar aonde você chega na primeira meia hora de Making a Murderder. Ou melhor dizendo: até aí, não tem spoiler nenhum – se é que é possível ter spoiler numa história real, mesmo que seja uma desconhecida por quem está assistindo. O que acontece depois de assentadas as informações básicas é que é de deixar todo mundo boquiaberto. Bom, deixa eu falar por mim: eu fiquei boquiaberta, não conhecia nada do caso. Fiquei num grau de perplexidade absurdo quando descobri o que você, a essas alturas, tendo vindo até aqui, já deve saber. Acontece um assassinato. Ossos de uma jovem desaparecida são encontrados no terreno de Steven – um ferro velho enorme, que está na família dele há gerações. Pior: aparentemente, Steven foi o último a ver a moça com vida. A partir daí, a opinião pública se volta contra ele. É nessa parte que Making a Murderer encontra sua questão mais forte: Steven Avery é um abusador e assassino frio, ou todo o departamento de polícia participa de um complô para condená-lo e não arcar com as responsabilidades pelos erros do passado?

A opinião das realizadoras (sim, são duas mulheres \o/) nos leva claramente para a segunda opção. Nessa hora é necessário entender a natureza desta produção. Estamos falando de uma série documental que tem uma causa: ver um caso real sob uma outra perspectiva. Quem já assistiu aos documentários sobre os crimes em West Memphis, ou quem já viu Na Captura dos Friedman, está acostumado com esse tipo de abordagem: as informações levantadas têm sempre a intenção de contestar as versões oficiais, e isso, do ponto de vista do espectador, deixa aquela sensação de que não estão te contando a história inteira.

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Steven atualmente

Em Making a Murderer essas lacunas incomodam. São muitas perguntas sem resposta, muitos desvios de atenção, muitas perguntas que a produção se recusa a fazer. Assim, pelo menos no meu caso, foi necessário pensar nos objetivos das realizadoras para não me irritar completamente e desconsiderar a série. Elas pretendem fazer um contraponto à opinião generalizada de quem já conhecia o caso, e com isso querem tirar Steven da prisão – pois é, ele está preso até hoje, foi julgado e condenado após apenas dois anos em liberdade. Por causa desse objetivo, coisas que eu queria ver (e provavelmente não vou estar sozinha) não estão lá. Um exemplo: a personalidade do réu. Ele é um sujeito complexo, com histórico de violência, detestado por alguns familiares, tem QI abaixo do normal, não usa cuecas (ficamos sabendo disso no momento mais engraçado da série inteira) e isso é basicamente tudo o que sabemos sobre ele. Uma cidade inteira o odeia e já parecia odiá-lo muito antes dos crimes. Por quê?Ficamos sabendo por alto, em informações mais ou menos genéricas.

Para encurtar um texto que vai ficando maior do que eu esperava: Making a Murderer vai tomar as suas horas livres, vai ser difícil não maratoná-la. Trata de um desses casos estrangeiros que fazem o mundo inteiro ficar parecido com o Brasil. Lá também tem corrupção e má conduta policial, pobreza, tristeza e falta de perspectiva. E, assim como no Brasil, também há personagens interessantíssimos. Os que vemos nessa série documental muitas vezes parecem saídos diretamente de um filme americano do tipo “crime e tribunal”. Tem a vítima jovem, bonita, com uma vida inteira interrompida; tem o réu ambíguo e misterioso; os advogados idealistas; os repórteres desumanos e ambiciosos; os parentes que fazem sacrifícios e parecem ter uma fé inabalável. Tudo isso está lá e, assustadoramente, com parcialidade ou não, é tudo verdade.

Memórias de um Assassino – Salinui chueok

Bora investigar estas mortes

Bora investigar estas mortes

Como prometido, depois de Host fui correndo assistir mais um filme do Joon-ho Bong. Não sei nem dizer qual dos dois foi mais especial. Memórias de um assassino é aquele filme muito fácil de gostar e de assistir. Eu não senti o filme passar mesmo. Foram mais de duas horas que poderiam ter durado os três Senhor dos Anéis tranquilamente. Sabe aquela sensação boa que fica depois de um bom livro ou filme? Foi bem assim que eu fiquei.

O filme conta a história real de um caso de assassinato de mulheres em 1986, o que por si só já era o suficiente para mim. Depois de Zodíaco, a cada filme policial de serial killer contemporâneo (o filme, não a história) eu espero pelo melhor filme da minha vida. E sempre é uma decepção, acho que com exceção de Prisoners (Os suspeitos) – e aqui há outra exceção porque não é um filme realmente de serial killer – não me lembro de nenhum que tenha me feito suspirar (é, acho que eu suspiro com filme policial, mais especificamente de serial killer [o que isso diz sobre mim?]).

Por boa parte , esse é clima do filme

Por boa parte , esse é clima do filme

E o que é esse filme? Eu posso ficar escrevendo aqui até amanhã sobre cada cena. A de abertura com a criança correndo num campo de trigo (era trigo? algum cereal), em que aparece o primeiro corpo. Ou qualquer cena onde aparecem as casas por dentro, que diz muito sobre a situação do país na época. Ou então a cena de perseguição dos policiais atrás do suspeito. Ou melhor ainda, a cena em que o assassino ataca a vítima, na chuva. Todas são maravilhosas, e por vários motivos. Não é algo apenas estilizado onde só o visual importa. O diretor consegue captar isso e dar mais, nos contando todo o contexto do momento (seja de emoções ou o social mesmo).

É realmente para ficar impressionada. Se todo o cinema fosse assim eu nunca mais teria uma experiência ruim, isso eu garanto. Nada como ver um filme fácil de se ver. Agora o negócio é partir para o próximo filme do Joon-ho Bong.