Shirley

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Shirley, para mim, simboliza da melhor forma possível o gênero romance. A história é um retrato da época e da classe social de Charlotte Brontë, e mesmo sendo a mais realista possível, também é uma invenção. Quase um século depois da publicação de Pamela, de Samuel Richardson, Shirley expressa um conceito de amor e moral mais  alinhavado aos dias de hoje (e ainda assim discrepante, lógico) . Acho que isso por si só já é um ótimo motivo para ler o livro, porque se você não se importa com as idiossincrasias morais das pessoas do século XVIII e XIX, pelo menos a história de amor e o panorama político podem ser bem interessantes.

Shirley Keeldar e Caroline Helstone são as protagonistas desse romance edificante. Caroline é uma jovem órfã que vive com o tio no presbitério. Apaixonada por seu primo Robert Moore, ela vê seus dias passarem enquanto espera ter o amor correspondido. Quando Shirley, que é uma rica herdeira, chega à cidade as duas logo viram amigas. Uma é o oposto da outra, mas mesmo assim elas se afeiçoam rapidamente. Numa espécie de falso triângulo amoroso, Caroline gosta de Robert, Robert pode gostar tanto de Caroline quanto de Shirley e Shirley parece gostar de Robert. A dúvida dura um bom tempo, mas no fim, lógico, tudo se resolve e todos ficam felizes.

Caroline é a mocinha clássica da época: discreta, pura, sensível, impressionável e bondosa. Shirley é o oposto em muitos aspectos: destemida, temperamental e forte, mas tão bondosa quanto a amiga. Ninguém está ali para ser desprezível, elas são as mocinhas, e nesse aspecto há até uma posição bem feminista: são duas  personagens no século XIX, que não estão em confronto, e que conseguem ser o oposto em quase tudo enquanto se mostram pessoas de valor e companheiras uma da outra. Deixa eu me explicar: numa época em que qualidades desejáveis para uma mulher eram os traços atribuídos a  Caroline, colocar uma segunda protagonista no rolo, não para rivalizar, mas para demonstrar que o oposto também pode ser considerado desejável é desafiador ao leitor. Por isso, mesmo que Shirley apareça quase na metade da história, eu entendo por que o livro carrega seu nome.

E como acontece até hoje nos romances contemporâneos, as duas protagonistas estão rodeadas de outros tantos personagens, que dão início a várias discussões. Robert Moore é dono de uma fábrica de tecidos que precisa despedir seus funcionários para substituí-los por máquinas. A história se passa no começo do século XIX, época em que as guerras napoleônicas acabavam e a revolução industrial estava em curso. O momento não poderia ser pior para a população britânica. Fome e desemprego eram constantes e Charlotte Brontë fez questão de descrever tudo isso através de uma disputa de ex-funcionários e donos de fábricas, com o clima tenso entre todos.

Shirley é um romance significativo. Admito que em muitos momentos a personagem da Caroline Helstone me desafiou a continuar a leitura. É que ela é mais do que magnânima: é quase a idealização do sacro. Isso pode ser sim muito irritante, mas o valor histórico dos detalhes que o livro traz (vistos com uma diferença de décadas porque afinal de contas o romance é de 1849) se sobrepõe a um princípio de chatice que permeia certas passagens. Eu coloquei na cabeça que estava lendo um livro escrito na era Vitoriana, do gênero mais popular de então, contando uma história que à época era recente, e com isso eu alimentei a ilusão de que havia captado melhor o sentimento daqueles tempos. Acho que essa é uma das funções da leitura, acho que é por isso que até hoje as pessoas leem clássicos.

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