Alguns documentários e a minha necessidade de montar listas

Daqui a pouco começam as listas de fim de ano. Eu estou preparando as minhas. Foi muito bom fazer as do ano passado. Mais do que dizer o que vale ou não vale a pena, o proveito que eu tiro desse balanço é poder ver, com um mínimo de distância, o que é que chamou a minha atenção, quando, e que relação isso vai ter com as outras coisas que eu li e assisti durante 2017. Dá pra criar uma espécie de mapa dos meus interesses (ahaha). É um hábito que eu recomendo muito.

Eu acabei deixando algumas coisas de fora quando separei os melhores filmes que vi em 2016. A ausência mais sentida (por mim, é claro) não foi a de um filme em especial, mas a de um gênero. Acabei não falando dos documentários. E eu tenho um fraco por documentário. Com exceção de Faces da Morte e que tais, sou capaz de ver qualquer coisa sobre qualquer tema ou pessoa. Expresso imensa curiosidade sobre assuntos pelos quais nunca me interessei, e isso acaba produzindo alguns caminhos difíceis de explicar lá no tal “mapa dos meus interesses”.

rocco netflix

Em 2017 eu gostaria de saber, por exemplo, o que foi que me fez assistir a Rocco, o documentário sobre a vida e o trabalho do ator pornô italiano Rocco Siffredi. O que eu percebi é que Siffredi é uma das pessoas mais vaidosas sobre as quais qualquer um já apontou uma câmera. Então quer dizer que o filme é ruim? Muito pelo contrário. Quando o personagem principal é quase louco, tamanho o seu ego, não tem como o documentário ser desinteressante. Eu queria ver um documentário sobre os bastidores da indústria pornô (assim como Hot Girls Wanted) mas acabei acompanhando um filme sobre gente obsessiva e desequilibrada.

Falando em obsessão e desequilíbrio, na mesma madrugada eu vi Gaga: Five Foot Two, o documentário da Lady Gaga. Eu acho que posso dizer que eu tinha sentimentos neutros a respeito dela. Nunca parei para ouvir um álbum, mas também nunca pulava quando uma de suas músicas começava a tocar. Eu tenho todo um respeito por quem faz sucesso nesse nível planetário da Gaga, e as histórias por trás desse tipo de sucesso nunca decepcionam. Quase nunca. Quer dizer: eu tenho certeza de que Lady Gaga não virou Lady Gaga sem ter virado o mundo de cabeça para baixo, mas Five Foot Two não trata exatamente disso. Até aí tudo bem. O problema é que estamos falando do rei de todos os documentários de egotrip. Ridiculamente reverente a sua personagem principal, todo supervisionado por ela (mesmo que ela negue, fala sério!), Five Foot Two mostra meio sem querer uma cantora cheia de si, falando platitudes como se fossem pílulas de sabedoria, tentando fazer o espectador acreditar numa ideia romântica e velha daquilo que é arte e do papel que os artistas têm no mundo. O filme é tosco e piegas e abusa de uns recursos visuais toscos e piegas, e ainda por cima acredita firmemente em tudo o que ela fala, sem ironia aparente. Five Foot Two deixa a desejar na investigação que faz a respeito de Gaga. Eu espero que este não seja visto como o documentário definitivo a respeito dessa figura mais ou menos central da cultura pop dos últimos anos, porque caso contrário a gente vai começar a confundir documentário com vídeo institucional.

Mas por que tratar, numa pré-lista de fim de ano, de um filme que mais me deixou com raiva do que outra coisa? Não sei. Talvez para recomendar que você também veja ambos, Rocco e Five Foot Two, na mesma noite, prestando atenção nas semelhanças entre o ator pornô e a diva pop.

Além desses eu também vi Eis os delírios do mundo conectado, que não está entre as melhores coisas que o Werner Herzog já fez.

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O primeiro documentário digno a entrar numa lista de melhores do ano foi Bright Lights, sobre as espetaculares Carrie Fisher e Debbie Reynolds. Nunca fui fã de Star Wars, mas isso não me impediu de gostar da Carrie Fisher. A mulher era o carisma em pessoa. O documentário, no que diz respeito a tratar de seus personagens principais, era o exato oposto daquele da Lady Gaga. Bright Lights mostrou com honestidade que Fisher era bem difícil. Expôs os defeitos dela, que se abriu sem muita reserva, e foi fundo na relação entre mãe e filha. Olhando agora, e comparando a franqueza de Carrie Fisher com as poses de Gaga, dá para dizer que Five Foot Two mostrava a “humanidade” de Gaga do mesmo jeito que um candidato a uma vaga responderia, numa entrevista de emprego, que seu maior defeito é ser “perfeccionista e muito organizado”. Já Bright Lights passou longe da reverência imoderada, mas fez um perfil doméstico da mãe e da filha, recapitulou duas vidas passadas diante das câmeras e mostrou o que é que sobra disso bem quando estava todo mundo em choque com as mortes tristíssimas das duas. É um filme interessado em mostrar um retrato familiar e deixar o espectador formar uma opinião, em vez de carregar você pela mão para mostrar quão poderosa uma celebridade é.

Olhando agora: o que foi que me fez querer ver Bright Lights, que eu já imaginava ser muito triste? Não sei. Acho que eu fui atraída pela tragédia. Carrie Fisher morreu depois de um tempo no hospital; Debbie Reynolds já estava fragilizada, não aguentou o baque e morreu. Mas me recuso a pensar que fui atraída pela tragédia como seria se estivesse lendo uma revista de fofoca ou fazendo um comentário maldoso. Por minha própria experiência com a minha mãe, acho que há com frequência uma espécie de simbiose entre mãe e filha. Acho que foi a imersão nesse relacionamento que me interessou, acho que foi isso o que me tocou em especial.

Que mais? Se essa fosse uma lista dos melhores documentários que eu vi em 2017, e se eu tivesse algum insight a respeito do racismo em solo norte-americano, eu teria que falar sobre I am not your negro. É revoltante, como não poderia deixar de ser, e é especialmente poderoso porque conta com a inteligência de James Baldwin – sua voz, sua vida, e o que ele tem a dizer. Além do mais, esse filme é muito bem editado, montado, roteirizado ou o que o valha. Tanto assim que ele empalidece outro doc da mesma época, e com o mesmo tema, que é aquele A 13ª Emenda.

Para engatar no ativismo político americano do século XX, só para ter um gancho, eu também assisti a American Anarchist. Outro perfil bastante complexo, este aqui conta a história do sujeito que escreveu The Anarchist Cookbook, aquele livro que ensina qualquer leigo a preparar uma bomba caseira (utilizado, por exemplo, pelos assassinos de Columbine). Onde é que esse filme se situa no “mapa dos meus interesses”? Não sei. Eu poderia dizer que me interesso especialmente por Columbine e assassinatos de massa desde esse texto aqui, mas acho que meu marido escolheu nesse dia e eu estava com preguiça de sugerir alguma outra coisa. Não sei. Vale a pena? Sim. Eu me lembro de ficar pensando “gente, as voltas que a vida dá” a cada cinco minutos.

Caramba, cheguei a 1201 palavras no parágrafo anterior. Ninguém vai ler isso, nem por interesse nem por bondade. Vou encerrar com algumas sugestões, no estilo bate-bola/jogo rápido da Marília Gabriela (entregando a idade). Um documentário para pensar que só tem abobado no mundo? Extraordinary – The Stan Romanek Story; um documentário para pensar que o tabu mata e deixa a gente infeliz? Whitney Houston – Can I Be Me; outro documentário que foi muito menor que a figura que o inspirou? Laerte-se; um documentário para matar saudade do Jerry Seinfeld? Comedian; um documentário para fazer diminuir um pouco a sua inveja dos japoneses e a sua vontade de morar no Japão? Tokyo Idols.

(Lembrando que este não foi um post com uma lista de melhores do ano. Todos esses documentários foram becos sem saída no “mapa dos meus interesses” [gente, que termo ridículo!].)

Agosto pt. 2: The Night Of, O.J. Simpson, Minha Luta, Pedrazul, outras coisas menos nobres: de volta à programação normal.

Posso começar de onde parei? Não posso. Antes de entrar nas leituras do mês preciso terminar algumas coisas que eu deixei em aberto.

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Raspei o cabelo, agora sou malvadão

Nos últimos dias de julho eu falei sobre The Night Of, a série da HBO que está com final de temporada marcado para o próximo domingo. Eu disse, entre outras coisas, que o protagonista tinha uma super cara de bonzinho, e que, abre aspas para uma Talita um mês mais jovem, menos vivida e menos maltratada pela vida: “o seriado ainda não deu material suficiente para que se especule sobre os motivos do crime, ou sobre as motivações dos personagens principais, mas o pano de fundo político leva a imaginação longe”.

Pois é. Àquela altura eu tinha visto três episódios. O problema é que agora a cara de bonzinho do protagonista foi embora, porque a série decidiu que ele deveria virar meio bandidinho dentro da cadeia. Essa transição foi um pouco sem pé nem cabeça, apesar de, a princípio, fazer muito sentido. Faltando um episódio para o fim, pode ser que Naz seja o culpado e não tenha havido transformação nenhuma, ainda assim em The Night Of a sutileza é zero.  A tese é: por mais que alguém entre na cadeia como um inocente, jamais sairá de lá sem que tenha virado culpado de alguma coisa. Tudo bem, mas a gente sabe que ninguém vive de tese no mundo do entretenimento. Eu tive certa dose de razão em dizer que a cara de bonzinho não estava ali à toa, mas o que a gente conseguiu com a transformação em termos de complexidade? Bem pouquinho. A série tem roupagem e dinheiro de tevê de primeira, mas o espírito vai esbarrando mais e mais no policial rasteiro. Triste.

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Mais triste ainda é O.J.: Made in America, um documentário em cinco partes sobre a vida, a carreira e os assassinatos de O.J. Simpson. A parte boa é que o documentário é triste, mas é excelente. No começo do ano eu vi o piloto de American Crime Story: The People v. O.J. Simpson, aquela com o Cuba Gooding Jr. Fiquei com muita vontade de gostar, mas não deu. Até senti inveja de quem acompanhou com entusiasmo. A série ficcional acabou ganhando prêmios e tudo. Só que O.J.: Made in America é o melhor documentário em partes que eu já vi. Faz Making a Murderer parecer um trabalho de faculdade com cartolina e fita crepe. O seriado monta parte a parte o tamanho da relevância do caso para a questão racial norte-americana, ainda vê o crime em detalhes (sem nenhuma apelação ou queda pela morbidez) e esmiúça a personalidade de O.J. Simpson desde os tempos da faculdade até a véspera de sua prisão em 2008. No total são 450 minutos, e não dá para dizer que um deles foi mau gasto. Eu tinha até colocado um livro sobre o caso entre as minhas próximas leituras, mas acho que vou deixar para depois, tamanho o grau de complexidade dessa série documental.

Num plot twist de sangue de barata e falta de seriedade, por causa de O.J.: Made in America eu acabei revendo Corra que a polícia vem aí 33 e 1/3. Disso eu falei no texto anterior, não foi? Pois bem. Havendo tirado as séries de tevê do caminho, vamos às leituras.

Tem sido um mês de começos. O livro de agosto da meta dos 12 livros do ano é Um outro amor, o segundo volume da série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård. Não cheguei nem na metade, mas devo terminar essa semana. Assim como todos os outros da meta de 12, vai ter resenha aqui. Posso dizer que esse segundo me animou mais do que o primeiro, mas vamos com calma. Também comecei Missoula, de Jon Krakauer, aquele livro que causou certo furor por tratar de uma onda de estupros numa cidade universitária dos Estados Unidos. Eu não pretendia escrever sobre ele, mas o livro é tão bom e tão cheio de argumentos que vai ser difícil deixar de fazê-lo.

A editora Pedrazul está tendo um 2016 espetacular, e pelo jeito eles são meio incansáveis. Eu comprei a edição deles de Esposas e Filhas, da Elizabeth Gaskell e, sério, o livro é muito lindo, rechonchudo, recheado. Quer dizer: é enorme, e eu mal comecei, pouco avancei, e ainda vai levar um tempinho. Mas a gana que eu tive para comprá-lo ainda está em mim para a hora de lê-lo. De onde estou, consigo enxergá-lo na estante e ele que me espere.

Um que eu terminei por esses dias, em ebook, foi Vocação para o mal, de Robert Galbraith, que todo mundo sabe que é a J.K. Rowling. Eu fico um pouco angustiada com isso, já que, poxa, todo mundo sabe agora. Qual é a do nome diferente? Como alguém que não andou no trem de Harry Potter a tempo mas andou um pouquinho, digo que, se Rowling estiver escrevendo romance policial sob outra alcunha com medo de arranhar sua reputação de autora milionária de série de sucesso comercial incomparável, ela pode ficar tranquila que o detetive Cormoran Strike e sua assistente Robin Ellacott – uma sidekick chamada Robin; boa sacada, hein – são dois dos melhores personagens que ela já fez. Vocação para o mal, ainda por cima, é o melhor dos três romances de Galbraith/Rowling até agora. O casal está mais shippável do que nunca (não Galbraith e Rowling, eu falo de Cormoran e Robin), os personagens parecem mais confortáveis porque já ganharam bastante estofo. Para quem chegou até aqui, Cormoran e Robin já têm vida, já dá para encarar uma situação e imaginar o que um dos dois faria diante dela. Espero que um quarto livro chegue logo, e acho que deve chegar porque, pelo jeito, J.K. Rowling não dorme.

claire contrerasFalando em ebook, eu terminei ainda Kaleidoscope Hearts, um romance new adult, de Claire Contreras, com um chove-não-molha irritante. O cara larga a moça, a moça toca a vida e fica noiva de outro, o noivo morre, aquele primeiro cara se reaproxima. Ele correndo atrás, ela se fazendo de difícil. Não posso dizer que esse livro me elevou espiritualmente, mas nada tenho a esconder, ok? Ok.

take me for grantedEm Take Me for Granted, de K.A. Linde, o bonitão é vocalista de uma banda daquelas que tocam em barzinho e em festa de universidade. Todas o amam, e ele nem aí pra ninguém, só querendo transar e passar para a próxima. Isso porque ele ainda não conheceu nossa mocinha que tem açúcar nas calcinhas. Quando ele a conhece e ela o ignora, pronto: ele se apaixona caninamente (como na frase “ficar como um cachorro atrás de alguém…”). Para falar a verdade, as situações nesse livro eram tão repetitivas que eu realmente não me lembro do que me fez terminar a leitura. Acho que não fui eu, acho que Pazuzu leu no meu lugar.

This-is-War-Baby-This is War, Baby, de K. Webster, era o que mais prometia. Começou de um jeito inusitado. A guria foi raptada pelo vizinho bonitão, com quem flertava inocentemente, e ele quase a matou. Ela ficou trancafiada num quartinho, sofreu as mais terríveis humilhações. O livro tem algumas cenas muito fortes, humilhações sexuais de revirar o estômago. Até que, claro, o mocinho aparece. Um cara obsessivo-compulsivo e germofóbico que compra a nossa protagonista num leilão (pois é, o cara malvadão raptou ela pra vender num leilão e toda a humilhação sexual grotesca era parte de um tipo de treinamento). Então, pois é, o mocinho comprou a mocinha num leilão frequentado por predadores sexuais. Ele é doido, portanto? Não. Ele é bonzinho. Ele não quer maltratá-la. Nesse ponto a história perde a graça. O começo foi bem bizarro e diferente, mas o fim trouxe a mesma coisa de sempre. Não tenho vontade de ler a continuação.

Acabei. Poxa, foi preciso recapitular tudo isso (no post anterior e neste) para conseguir perceber que eu não tinha visto ou lido nada digno de um texto inteiro. Quer dizer: na verdade todas essas coisas são dignas, sim, de um texto inteiro. Eu é que não tirei material para um texto inteiro de nada dessas coisas. Mas esse foi um formatinho muito gostoso de usar para não deixar a peteca cair. Aviso aos meus poucos e bons (e excelsos, divinos, sublimes, e TOPS!) leitores que nos próximos dias voltaremos à programação normal.

The Wolfpack

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Irmãos Angulo

The Wolfpack é um documentário que tem tudo para ser soturno, mas acaba passando longe disso. Trata da história de seis meninos que viveram presos – pelo pai – durante toda a infância e parte da adolescência em um apartamento em Manhattan. Não estavam acorrentados, mas eram coagidos por um adulto que manteve, por todos esses anos, um estilo de vida bizarro. O filme mostra o cotidiano dos meninos enquanto eles buscam emancipação e, cada vez mais, liberdade.

Os pais deles se conheceram em Machu Picchu. Ela americana e ele peruano. A paixão levou ao casamento e eles foram morar nos Estados Unidos. O plano era juntar dinheiro e ir para a Escandinávia, mas os filhos foram surgindo e o dinheiro rareando. Foram sete, ao todo. Além dos seis irmãos Angulo há uma menina que, com necessidades especiais, pouco aparece em tela.

Oscar, o pai peruano, quis criar a prole como uma tribo. Cabelos compridos, nomes tirados do sânscrito e contato mínimo com o mundo do lado de fora do apartamento. Educados pela mãe, e vivendo com dinheiro da assistência social, a princípio os Angulo parecem bem bizarros. Mas aí vem o que mais me chamou a atenção no documentário: os meninos são extremamente lúcidos. Sem acesso a internet ou televisão, eles recorreram a filmes em DVD para conseguir um pequeno vislumbre do mundo além das paredes. O cinema ocupa um lugar muito importante na imaginação dos meninos. Talvez por isso eles pareçam tão à vontade na frente da câmera.

Em 2010, um dos meninos Angulo, então com 15 anos (eles são muito parecidos, e têm nomes tão difíceis que eu vou ficar devendo o nome correto) resolveu desconsiderar uma das regras do pai e saiu de casa para dar uma volta. Usando uma máscara caseira inspirada em personagem de filme de terror, ele deu um passeio pelo bairro. Claro que a máscara chamou a atenção das pessoas, e em pouco tempo a polícia foi chamada. Como o menino não interagia ele foi levado a um hospital psiquiátrico. De lá acabou voltando para casa, mas depois desse episódio a libertação entrou em progresso. Aos poucos os meninos começaram a sair cada vez mais. Em The Wolfpack a liberdade não veio através de denúncia ou da polícia invadindo um cativeiro. A liberdade veio através da contestação dos filhos ao modo de vida dos pais, algo que acontece em qualquer família.

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Os irmãos com a diretora Crystal Moselle

Em um desses passeios, os Angulo conheceram a mulher que dirigiria o documentário, Crystal Moselle. Ela os abordou quando viu os seis com roupas iguais às dos personagens de Cães de Aluguel. Moselle primeiro descobriu a paixão dos meninos por filmes e, depois de frequentar a casa por um tempo, acabou percebendo que tinha uma história muito maior nas mãos. No fim das contas, uma história de amadurecimento e companheirismo.

Moselle conseguiu realizar um filme primoroso. Tanto pela intimidade que é visível em tela (ela conheceu os meninos antes de pretender filmá-los e isso fez com que se estabelecesse um laço), quanto pelo material que os Angulo já tinham: há muitos vídeos da infância no apartamento. Mas o que empresta graça e carisma ao documentário é o repertório cinematográfico que os Angulo construíram durante todo o período de isolamento. Citações, referências, roupas, traços de personalidade: é como se o cinema tivesse ajudado a criar os meninos, a aproximá-los do resto do mundo.

É incrível pensar que os seis viveram anos encerrados numa verdadeira caixa e que, ao saírem, são gente comum – tão loucos quanto todo mundo. A sensação é de que aquilo que os estava matando também os estava salvando. Família tem dessas coisas.

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Eles hoje em dia

Em The Wolfpack o que mais me cativou foi uma narrativa cinematográfica que se negou a apelar para o sentimentalismo ou para o aspecto bizarro da situação. O documentário se concentrou em quem são aqueles meninos. Em alguns momentos eles contaram como foi difícil viver daquela forma, falaram do ódio inevitável pelo pai, mas o principal objetivo da diretora era mostrar como os Angulo são meninos perspicazes, conscientes do que são e do que viveram.

Fiquei muito feliz por terminar o documentário sem me sentir destruída. Foi bom pensar que eles têm muitos anos pela frente e um futuro além de quatro paredes. Foi bom sentir um pouco de otimismo. Ah, já ia me esquecendo: tem na Netlix.

Making a Murderer

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Uma evidência de DNA tira da cadeia um homem injustamente condenado por estupro. Steven Avery cumpriu 18 anos de pena por um crime que não cometeu. Essa história, sozinha, já é capaz de colocar muita gente em frente à televisão. Só que Making a Murderer, que chegou à Netflix recentemente, é uma série documental tão cheia de reviravoltas, e trata de um caso tão intrincado e complexo, que defini-la acaba se tornando uma tarefa muito complicada. Pior que isso: se é difícil dizer do que a série trata em 140 caracteres, ter uma opinião sólida a respeito do caso, depois dos 10 capítulos cada um com quase uma hora, é quase impossível.

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Steven jovem na sua primeira condenação

Vale a pena dizer, logo no começo, que se você deixar de ver Making a Murderer vai perder uma das coisas mais interessantes que a Netflix já fez em seu esforço para dominar o mercado de streaming e tirar, de vez, a televisão do aparelho de televisão. A Netflix tinha produzido documentários sobre temas tão distintos como o mercado americano de pornografia e a vida da cantora Nina Simone, mas, pelo menos entre as coisas que eu pude acompanhar, ainda não tinha feito nada tão absolutamente televisivo. Deixa eu me explicar: Making a Murderer tem aquela cara de produção de TV a cabo, dessas que você esbarra na tarde de um feriado e que te fazem ficar pensando: “meu deus, americano é tudo maluco, olha o tipo desse crime”.

Você pode ter certeza de que alguma coisa perto dessa última afirmação vai passar pela sua cabeça. A série começa com Steven Avery saindo da prisão em 2003. Exames possibilitados por novas tecnologias conseguem colocar outro homem na cena do crime: o espancamento e  estupro de uma mulher, Penny Beerntsen, em 1985. Fica comprovado que Steven não foi o responsável no caso de Penny, e ele sai da prisão abraçado por parentes e amigos, e com a benção da opinião pública. Mas o departamento de polícia da cidadezinha em que a família de Steven morou a vida inteira não tem nada a comemorar. Seja por negligência, incompetência ou mesmo má fé, os policiais passaram longe dos procedimentos e métodos recomendáveis para lidar com o caso em questão. Assim, logo após deixar a prisão, o antigo réu processa o estado.

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Esse é o ponto de partida e o lugar aonde você chega na primeira meia hora de Making a Murderder. Ou melhor dizendo: até aí, não tem spoiler nenhum – se é que é possível ter spoiler numa história real, mesmo que seja uma desconhecida por quem está assistindo. O que acontece depois de assentadas as informações básicas é que é de deixar todo mundo boquiaberto. Bom, deixa eu falar por mim: eu fiquei boquiaberta, não conhecia nada do caso. Fiquei num grau de perplexidade absurdo quando descobri o que você, a essas alturas, tendo vindo até aqui, já deve saber. Acontece um assassinato. Ossos de uma jovem desaparecida são encontrados no terreno de Steven – um ferro velho enorme, que está na família dele há gerações. Pior: aparentemente, Steven foi o último a ver a moça com vida. A partir daí, a opinião pública se volta contra ele. É nessa parte que Making a Murderer encontra sua questão mais forte: Steven Avery é um abusador e assassino frio, ou todo o departamento de polícia participa de um complô para condená-lo e não arcar com as responsabilidades pelos erros do passado?

A opinião das realizadoras (sim, são duas mulheres \o/) nos leva claramente para a segunda opção. Nessa hora é necessário entender a natureza desta produção. Estamos falando de uma série documental que tem uma causa: ver um caso real sob uma outra perspectiva. Quem já assistiu aos documentários sobre os crimes em West Memphis, ou quem já viu Na Captura dos Friedman, está acostumado com esse tipo de abordagem: as informações levantadas têm sempre a intenção de contestar as versões oficiais, e isso, do ponto de vista do espectador, deixa aquela sensação de que não estão te contando a história inteira.

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Steven atualmente

Em Making a Murderer essas lacunas incomodam. São muitas perguntas sem resposta, muitos desvios de atenção, muitas perguntas que a produção se recusa a fazer. Assim, pelo menos no meu caso, foi necessário pensar nos objetivos das realizadoras para não me irritar completamente e desconsiderar a série. Elas pretendem fazer um contraponto à opinião generalizada de quem já conhecia o caso, e com isso querem tirar Steven da prisão – pois é, ele está preso até hoje, foi julgado e condenado após apenas dois anos em liberdade. Por causa desse objetivo, coisas que eu queria ver (e provavelmente não vou estar sozinha) não estão lá. Um exemplo: a personalidade do réu. Ele é um sujeito complexo, com histórico de violência, detestado por alguns familiares, tem QI abaixo do normal, não usa cuecas (ficamos sabendo disso no momento mais engraçado da série inteira) e isso é basicamente tudo o que sabemos sobre ele. Uma cidade inteira o odeia e já parecia odiá-lo muito antes dos crimes. Por quê?Ficamos sabendo por alto, em informações mais ou menos genéricas.

Para encurtar um texto que vai ficando maior do que eu esperava: Making a Murderer vai tomar as suas horas livres, vai ser difícil não maratoná-la. Trata de um desses casos estrangeiros que fazem o mundo inteiro ficar parecido com o Brasil. Lá também tem corrupção e má conduta policial, pobreza, tristeza e falta de perspectiva. E, assim como no Brasil, também há personagens interessantíssimos. Os que vemos nessa série documental muitas vezes parecem saídos diretamente de um filme americano do tipo “crime e tribunal”. Tem a vítima jovem, bonita, com uma vida inteira interrompida; tem o réu ambíguo e misterioso; os advogados idealistas; os repórteres desumanos e ambiciosos; os parentes que fazem sacrifícios e parecem ter uma fé inabalável. Tudo isso está lá e, assustadoramente, com parcialidade ou não, é tudo verdade.