Um balanço final da primeira temporada de The Deuce

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Teria sido frustrante se a HBO não houvesse confirmado uma segunda temporada de The Deuce. Isso porque a série teve a ambição de construir um quadro enorme do mercado do sexo na Nova York dos anos 1970, e porque este quadro mal começou a ganhar vida. Ao mesmo tempo, como ninguém é bobo, a primeira temporada acabou sendo uma história completa – pouco ficaria em aberto se mais episódios não fossem encomendados.

The Deuce ganhou elogios de veículos especializados e já saiu com a expectativa lá no alto por causa do renome de seus criadores. David Simon é o sujeito por trás de The Wire. George Pelecanos, além de ter trabalhado em The Wire, é um reconhecido autor de romances policiais. Richard Price, um dos produtores executivos, foi responsável por The Night Of e também é um romancista importante. No elenco estão James Franco e Maggie Gyllenhaal, além de um monte de rostos conhecidos para quem viu qualquer coisa nos últimos quinze anos.

Ainda assim – e como acontece com frequência – o burburinho não durou muito. A série não é daquelas de colocar a internet inteira em colapso quando alguma coisa vai acontecer. Pelo que eu vi a recepção no Brasil foi meio morna. The Deuce não pegou de jeito aquele pessoal que é louco por séries, nem entusiasmou bastante a turma cinéfila. Da minha parte, ah, eu achei que fosse me entusiasmar mais. Acho que houve algumas concessões bobas ao que se pensa ser o gosto do público. Vou tentar explicar.

Um exemplo é o arco de Eileen, interpretada por Maggie Gyllenhaal. Talvez em tempo de tela não dê para perceber o tamanho da centralidade da personagem dela, mas é ela quem conduz tudo. As mulheres de The Deuce estão ou em conflito para perceber que um novo lugar no mundo é possível, ou em luta para construir este novo lugar. Eileen é uma prostituta que não tem cafetão. Os cafetões exploram as meninas, sob a desculpa de protegê-las, mas Eileen não é o perfil comum de uma prostituta. Ao longo dos oito episódios a gente descobre que ela apelou para a prostituição para fugir de um pai repressivo, mas que vem de uma família mais abastada que as das demais. Nas ruas ela corre tanto perigo quanto as outras mas, diferentemente das outras, resolveu administrar sozinha o que ganha e como trabalha. Eileen é bem resolvida com sua sexualidade. É madura, liberada, inteligente, conhece bem o próprio corpo. Acontece que o ambiente de trabalho é muito, muito insalubre. Não é de espantar que algumas meninas queiram proteção. Ela apanha de mais de um cliente, o perigo vem como que em escalada. O fim da década de 1970 é um dos períodos mais violentos da história de Nova York. A polícia não liga se algum maluco enforca, esfaqueia ou estripa uma garota de programa. A situação fica insustentável e Eileen precisa parar de trabalhar. Por sorte os tempos estão mudando e, por competência, ela consegue se envolver num negócio que só vai crescer: o cinema pornográfico.

Não tenho nem como negar que isso é muito legal. Eileen é uma personagem central porque serve como símbolo da mudança dos tempos. Na juventude ela foi reprimida pelas limitações sociais, os tabus sexuais a marginalizaram – com uma revolução nos costumes ela vai encontrar seu lugar. A princípio Eileen fica na frente das câmeras, transando, mas depois ela começa a usar a criatividade e mostrar que é capaz, e aí a oportunidade surge. Quando a temporada termina ela já está dirigindo seu primeiro filme, um pouco por acaso e um pouco por obstinação. Para mim isso é quase um modelo de arco. Ela foi do ponto A ao B e tudo se encaixa com o grande panorama histórico. Onde estão as concessões bobas? Na hora de colocar essa jornada na tela.

DEUCE - THE

O roteiro traz uma personagem cheia de complexidades, mas ao mesmo tempo quer contar essa história como se estivesse falando com uma criança, como se The Deuce fosse um telefilme edificante. Um exemplo pontual está numa cena do último capítulo. O lugar é um set de filmagens. Maggie Gyllenhaal está usando meias 7/8 e um robe de seda. Eileen está pronta para rodar sua próxima cena. Mas o telefone toca. Uma assistente atende. O diretor não vai conseguir chegar a tempo. O que resta a fazer a não ser ir para casa? Mais do que obstinada, Eileen parece predestinada a assumir aquela posição: já que o diretor não vem, quem dirige sou eu. Faz sentido? Na vida real, eu não tenho dúvida nenhuma de que uma atriz pornô consiga dirigir um filme. Eu sei que isso acontece bastante. Muitas atrizes juntam dinheiro e abrem suas próprias companhias com o objetivo de ter controle sobre tudo o que fazem ou de ganhar dinheiro ao produzir conteúdo num meio que já conhecem. Só que The Deuce tratou esse processo de um jeito simplificador em excesso. O set é grande. Há um assistente de iluminação, uma contra-regra, vários atores, cenário, figurino, dinheiro envolvido: tudo isso para uma pessoa com zero experiência tomar as regras só porque se dispôs a aprender fazendo. O desenrolar da cena não é só inverossímil para qualquer um que já tenha trabalhado com qualquer coisa: ele também é feito com o máximo apego a fórmulas muito conhecidas de quem acompanha, por exemplo, o Supercine. Eileen compreende o trabalho do diretor, dá pitaco na direção de arte, trabalha o lado psicológico das atrizes menos experientes. Maggie Gyllenhaal faz tudo isso com a sutileza de um trator: cara de boazinha, cara de compreensiva, cara de quem está exercitando a criatividade.

Seria legal ver mais novidades em uma série com as pretensões de The Deuce. A sensação de déjà vu também bate forte quando se acompanha alguns dos personagens secundários: a jovem rica que largou a faculdade para virar garçonete, desafiar os pais e viver a “vida real”; a prostituta sonhadora que lê e vê filmes entre um programa e outro; o trabalhador assalariado que se encanta com as possibilidades da vida do crime; o trabalhador honesto que se vê seduzido pela máfia ao reafirmar sua masculinidade; o casal gay em crise porque um tem mais reservas que o outro a respeito de demonstrar intimidade em público e sair do armário. De novo: tenho certeza de que essas pessoas existem na vida real, mas acho que não precisamos vê-las no cinema e na tevê, para sempre, sob as mesmas luzes.

Mas todo esse didatismo não chega a estragar a série, que tem um fio condutor bem interessante. No fim das contas, o antagonista principal em The Deuce é o homem que contrata prostitutas. Ele aparece pouco, mas é a escrotidão em forma de criatura. Mais vil que os cafetões, mais hipócrita que os mafiosos e policiais, muito mais problemático que as prostitutas, o homem que contrata prostitutas é quem as submete à violência, quem solicita o sexo e quem as reprime por terem fornecido aquilo que ele solicitou. Trocando em miúdos: em The Deuce o homem que contrata é o símbolo de uma doença social. Ele vai ferrar todo mundo porque quer sexo, ele vai fazer de tudo para esconder suas preferências, ele vai pagar o que for preciso para ter o que quer. Quando a sociedade e a tecnologia permitem que essa obsessão seja levada adiante sob a proteção da privacidade é que surge a milionária pornografia moderna.

(Eu não sei se essas hipóteses correspondem exatamente à realidade, mas não custa lembrar que o Brasil, por exemplo, é ao mesmo tempo o país que mais mata transexuais e o que mais consome pornografia trans.)

De qualquer forma, em The Deuce os personagens servem para levar uma tese adiante: a de que uma revolução nos costumes e na tecnologia tirou o sexo pago das ruas e o levou para dentro das casas. Às vezes essa tese chega até a gente de um jeito meio simplista e quadradinho, mas o resultado final é bom. O tema fica mais e mais interessante na medida em que a gente conhece mais ângulos, e isso não é um feito que toda série consegue realizar. Pelo jeito a segunda temporada vai querer investigar se essas grandes mudanças na indústria do sexo e na sociedade serão necessariamente boas.

P.S.1: A recriação da época, em cenários e figurinos, está impecável.

P.S.2: Eu não sei julgar se James Franco é bom ator, mas eu adoro a participação dele em The Deuce. Ele faz irmãos gêmeos: um é malandro, o outro é ainda mais malandro. Os dois só se beneficiam do jeito canastrão de Franco.

Seis detalhes sem importância de Game of Thrones

carinho no dragão

Maratonei Game of Thrones. Fui do começo ao fim num tempo tão curto que até me envergonha dizer. Tinha visto o piloto na época em que ele saiu, mas nada ali me indicava que a série era para mim. Agora, no começo de junho, me veio à cabeça que seria uma boa hora para começar de novo. O resultado é que me apeguei a uns seis personagens (é que tem muita gente carismática) e não conseguia assistir a outra coisa (é que tem muita cena de ação bem coreografada, tensa, que absorve a gente). Por causa da popularidade tão grande de GoT, até quem não acompanha acaba sabendo de tudo o que acontece porque quando começa ou termina uma temporada a internet enlouquece. Por sorte, quem é Alzheimer vive em dobro – como dizia a comunidade do Orkut – e para mim tudo era novidade.

O que não é novidade é que a série tem fanáticos que já esmiuçaram cada detalhe, leram os livros mais de uma vez, bolaram teorias (tanto as absurdas quanto aquelas que fazem muito sentido) e decuparam cada episódio em busca de um significado oculto. Acho que eu não sou esse tipo de fã. Às vezes eu deixava todo o resto para prestar atenção em uma besteirinha. Uma expressão engraçada na cara de um ator, um detalhe com pouco significado, uma intriga que ficou sem explicação. Não é que eu não entrasse na história, mas é que tem tanta coisa em que reparar que tem hora em que acontece de a gente não se concentrar bem no que é o ponto principal. Será que eu consegui me explicar? Fiz uma lista com seis momentos sem importância que me desviaram do caminho. Que comece o aquecimento para a sétima temporada.

JORAH MORMONT TOTALMENTE “TRIGGERED”

jorah mormont friendzone

Ele é a enciclopédia ambulante da khaleesi. Sabe tudo sobre toda cidade que ela precisa conquistar. Cultura, arquitetura, população, hábitos alimentares, organização política: é só pedir que Jorah Mormont esmiúça aquelas partes exóticas do mundo de GoT para a khaleesi ter uma pequena noção do buraco em que está se metendo. Como nada é fácil, acontece de Mormont ser perdidamente apaixonado por ela. O cavaleiro quase tem um tremelique toda vez que precisa olhar Daenerys nos olhos, num amor que é verdadeira devoção. Muito bonito. Só que tem duas coisas: primeiro que o sentimento não é recíproco – a Mãe dos Dragões só pensa no trono que quer conquistar e, quando tem tempo para escapar um pouquinho, parece ter outro tipo de homem em mente; segundo: agora Mormont está apaixonado e daria a vida por ela, mas ele já foi um traidor, um informante daqueles que queriam vê-la morta. É claro que ela vai descobrir. Vai escorraçar o homem e dizer que ele tem sorte de não ser executado.

E aí, será que ele lida bem com a separação? De jeito nenhum. A gente vai ficar sabendo do nível de sofrência quando, depois, Tyrion Lannister e Varys vão parar num bordel em Volantis. Lá uma prostituta está vestida de khaleesi para agradar os homens que “gostariam de foder uma rainha”. É um verdadeiro cosplay. A cópia não é tão graciosa quanto a original, mas está tudo lá: o cabelo platinado, o babyliss, a vestimenta azul. Num canto do bordel, meio louco, bêbado e decadente, totalmente perturbado pela visão da falsa Quebradora de Correntes sentada no colo de um qualquer, está Jorah Mormont. Só faltou aquela tarja de TRIGGERED. A cena deve durar dois segundos, mas eu fiquei rindo pelo resto do episódio. Para completar, ele sequestra o anão para dar de presente à amada.

MAMILOS

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A vida da khaleesi tem dessas. A certa altura ela precisa de um exército, mas o pessoal do ramo de venda de exércitos não parece muito legal. O sujeito que a apresenta aos Imaculados (aqueles soldados castrados na infância, máquinas de matar) é intragável. A gente sabe que ele vai morrer desde a primeira fala que ele dá, a gente sabe que ele vai morrer já por causa da escolha de elenco. Mas ele quer mostrar que os Imaculados não dão um pio diante da dor. O que ele faz? Ele chama um soldado e, sem cerimônia, corta-lhe o mamilo. Corta mesmo, como se estivesse passando a faca na casca de uma fruta. Eu preciso confessar que, fosse o que fosse a história, dali em diante nada mais conseguiu a minha atenção. O senhor cortou o mamilo do soldado, arrancou fora, só para provar que os Imaculados não estão nem aí para a dor. Mas é um mamilo, sabe? É claro que a pessoa que perde o mamilo vai ficar com ardência. Essa cena me deu arrepio. Quando eu lembro é como se alguém passasse as unhas num quadro negro. Ai.

AQUELE SENHOR DESCALÇO

high sparrow

Cersei não é boa estrategista. Ela está sempre maquinando. Na verdade todo mundo está sempre maquinando, mas ela não faz um movimento sequer que não seja voltado a um plano elaborado. Só que vocês podem reparar: ela só dá passo em falso. Quando ela encrenca com os Tyrell, porque Margaery finalmente conseguiu casar com o rei e virar rainha, a solução encontrada não é exatamente parcimoniosa. O que ela faz é dar poder a um grupo de fanáticos religiosos para que eles possam enquadrar os Tyrell. Só que, claro, os fanáticos saem do controle e tudo dá erradíssimo.

Enquanto isso acontecia, todas as minhas energias estavam voltadas para a roupa do líder da seita religiosa, o tal do Alto Pardal. Os monges dele não eram nada que a gente não tenha visto na vida real: apenas uma mistura de monge budista com franciscano com uma corrente amarrada no peito e um símbolo na testa. Mas o traje do Alto Pardal, um verdadeiro saco de batatas imundo e sem corte, me irritou profundamente. Eu entendo que a ideia era fazer um contraste entre ele e os pecadores bem arrumados de Porto Real. Tudo bem. Mas o velho não só era profundamente irritante, todo arrogante e com pose de sábio, como sempre aparecia despenteado, com a cara suja e descalço. Descalço. Eu parei para imaginar o chão de Porto Real. A quantidade de matéria fecal, xixi, resto de comida e sangue que deve ter por lá. Fora que a estrutura da cidade não é grandes coisas. Ruas de pedra não só acumulam mais sujeira como também quebram. Aquele velho andava com os pés descalços e sentia as pedrinhas e grãos de areia nos vãos dos dedos. E o pior: não usar sapatos não era um pré-requisito para entrar na seita porque os monges todos usavam uma botinha aparentemente feita de couro.

O gostoso é que a Cersei deu um bom jeito nele.

LÁ VAI A KHALEESI INDO EMBORA NO DRAGÃO

drogon

O diferencial de Daenerys no pleito pelo Trono de Ferro são os dragões. A série repete isso a todo momento. Faz sentido. Eles não só são uma arma poderosíssima, como também, só na presença, conseguem impressionar os inimigos e incentivar os aliados. Durante o torneio dos escravos, aquele em que Jorah Mormont virou uma espécie de Russel Crowe em Gladiador, os inimigos da khaleesi começaram a matar todo mundo e ela se viu cercada, com poucos homens e pouquíssima esperança. Foi aí que Drogon, que é o dragão principal, apareceu. Ele fez uma demonstração de força, matou um pessoal, deixou Tyrion Lannister de boca aberta e, por fim, pousou no meio da arena. Nisso Daenerys montou nele e saiu voando.

Os companheiros de batalha podem ter ficado um pouco desapontados com a rainha abandonando a luta assim sem cerimônia, mas eu achei tudo muito razoável. Pensei: agora o dragão vai parar no topo da pirâmide, que é a residência oficial, ela vai desembarcar em segurança e o problema foi resolvido. Que nada! Sem controle do dragão, nem Daenerys soube onde foi parar. Ele voou embora e a deixou sozinha no meio do nada. Tiveram que montar uma equipe de resgate para encontrar a rainha. Eu achei engraçadíssimo, ainda mais porque toda a cena da chegada do dragão foi apoteótica. Um daqueles momentos em que um fiapo de esperança vira uma glória gigantesca. Tudo isso para ela ficar perdida no meio de uma terra estranha, cercada de dothrakis que estão apostando para ver quem vai estuprá-la primeiro.

Mas ela é a Não Queimada, a Noiva do Fogo. No final não há quem lhe encoste um dedo.

E VOCÊ. QUEM É VOCÊ MESMO?

cersei qyburn

Eu tenho certeza de que isso deve ser muito bem explicado nos livros, mas para quem só viu a série ficou esquisito. Qyburn é aquele homem que faz experimentos com Gregor “A Montanha” Clegane. Ele aparece primeiro quando Jaime Lannister perde a mão. Dali em diante, numa ascensão impressionante explicada por ninguém, ele vai virar conselheiro de Cersei. Não tem graça nenhuma, eu sei, mas é aquele tipo de coisa que acontece quando o roteirista precisa enxugar personagens. Aqui em casa a gente sempre se lembra de um filme com a Nicole Kidman e o Daniel Craig, Invasores, que é meio que uma releitura de Invasion of the Body Snatchers. Lá, um médico que tinha uma salinha e um cargo desimportante num hospital sem destaque acaba indo parar no centro dos acontecimentos, só porque no roteiro não cabe outro médico. Ele está num helicóptero, ele descobre a cura, ele ajuda os protagonistas: tudo a serviço de uma história enxuta. A função de Qyburn em Game of Thrones é essa, e por isso ele sempre acabava roubando a minha atenção. Eu precisava me lembrar de quem ele era, e começava a pensar que estava perdendo alguma coisa, que alguém tinha explicado e eu tinha perdido. Como esse homem foi parar aí? Nesse mundo de tanta intriga não teve ninguém para barrar uma ascensão tão grande, nem para explicar porque ele é importante?

O fato é que agora o “Time Cersei” está bem peculiar. Tem ela, um cavaleiro sem mão, um cavaleiro zumbi e um médico louco.

MINDINHO FALANDO NO OUVIDINHO

sansa e littlefinger

“Só um tolo confiaria no Mindinho”, diz Sansa Stark no fim da sexta temporada. A função dele na vida é ser um fofoqueiro, intriguento, leva-e-traz, duas caras e fraco de caráter. Não demora nada para a série querer que a gente entenda isso, e uma das primeiras cenas dele é impagável. Ned Stark acabou de chegar a Porto Real com as duas filhas. O rei manda fazer um torneio. Um dos participantes é Gregor “A Montanha” Clegane. O episódio quer nos contar três coisas ao mesmo tempo: 1) Montanha é muito malvado; 2) Mindinho é muito fofoqueiro; 3) a origem da queimadura do Cão de Caça. Qual é a cena? Na arquibancada, Sansa, que àquela altura é toda empolgada com cavaleiros e cortesias e romances e casórios, sentou-se ao lado de Mindinho. O que ele faz? Ele conta a história da vez em que Gregor Clegane, ainda criança, colocou a cara do irmão no fogo só por causa de um brinquedo. Mas ele conta tudo no ouvidinho dela, aos sussurros. Quem já esteve em um lugar barulhento sabe que não se entende nada de um sussurro. Quem vai sussurrar tem que falar frases curtas, tipo “Vamos embora?” ou “Onde é o banheiro?”, mas o Mindinho conta a história inteira, uma frase atrás da outra, sussurrando alto, com cara de safado, para uma Sansa impressionada, em meio a uma arquibancada lotada. Não adiantou nada ele sussurrar, até porque ele falou alto. Todo mundo ouviu. Mania de falar perto da cara dos outros!

Família Soprano

familia soprano

A quinta temporada de Mad Men tem uma morte que me levou a abandonar meus sentimentos ambíguos por Don Draper. Dali em diante eu não consegui ver bondade nele. Mas a quinta temporada é bem longe. Antes disso, para cada falha de caráter ou compulsão pela mentira, Don Draper demonstrava uma fragilidade compreensível ou um gesto generoso e nobre. Neste mês de abril eu venci a minha resistência e comecei a ver Família Soprano. Não me enrolei com a primeira temporada, vi dois episódios por noite e até agora venho achando que todos os elogios que a série ganha são merecidos. Mas tem uma coisa que me espanta. Já pela metade da jornada dá para perceber que Tony Soprano não é aquele sujeito com altos e baixos, como são Draper e o Walter White de Breaking Bad. Descontada a complexidade que um personagem bem escrito e vivido por um ótimo ator sempre vai ter, Tony Soprano é ruim de dar medo. Ele é um monstro.

Os Sopranos são uma família complicada. Tony até gosta dos filhos mas, pelo menos nesse começo de série, eles são a penúltima prioridade em sua cabeça. Tudo é um aborrecimento. Carmela, a esposa, é a hipocrisia em forma de dona de casa rica. Livia, a mãe de Tony, é um bom argumento para quem acha que um fruto não cai muito longe da árvore. A velha é tão, mas tão malvada que trama a morte do próprio filho por pouco mais que um capricho. De dar pena são as crianças: uma menina, às vésperas de terminar a high school, e um menino fofinho e confuso, bem naquela fase bizarra da puberdade. À primeira vista eles são secundários, mas com o desenrolar da temporada fica claro que fazem parte de um argumento central da série, que é: insalubridade gera insalubridade, loucura gera loucura, bagunça gera bagunça.

Esse argumento é tão bem costurado que fica difícil discordar daqueles que dizem que Família Soprano fez parte de uma revolução na maneira de contar histórias na tevê. Os treze episódios reforçam todos os mesmos pontos, não há aquelas sobras para testar a opinião do público aqui e ali, nem personagens chatos que inspirem aquela ojeriza que roteirista gosta de alimentar.  Essa primeira temporada não tem falso problema e a produção ainda não precisava se preocupar com ganchos sem sentido que são uma maneira de levantar falatório em redes sociais. Não tem como negar que as séries muito premiadas dos anos 2000 e 2010 aprenderam bastante com Família Soprano. A história tem um centro nítido e indiscutível: aquele monstro de que eu falei no primeiro parágrafo.

Não faz muito tempo que eu comecei a perceber que há atores capazes de tirar sentido de uma produção capenga. No fim de março eu tentei ver Sons of Anarchy e não consegui. Eu ficava frustrada com a história se concentrar em alguém tão desinteressante como Jax, vivido por um ator tão fraco como Charlie Hunnam. Eu queria acompanhar Ron Perlman, ator dez vezes melhor num personagem muito mais complexo, mas a série não me deixava. Claro que tem coisa impossível de salvar, mas tem gente que justifica o salário altíssimo. James Gandolfini era um desses atores, e eu nem sei se ele ganhava assim tão bem. Tony Soprano é assustador. Sem ele a série perderia muito. Numa expressão de Gandolfini, ele pode parecer bonzinho e frágil, mas você já assistiu a O Homem Urso, de Werner Herzog? Tony Soprano parece um daqueles ursos fofões, atabalhoados, com um jeito de personagem de desenho, e aí na sequência seguinte ele está enchendo alguém de socos ou chegando muito perto da cara de um outro enquanto respira pesadamente pela boca e pelo nariz ao mesmo tempo. Esse tipo de violência-surpresa é um clássico dos filmes de máfia, basta lembrar de Joe Pesci em Os Bons Companheiros, mas Família Soprano leva a tensão para fora do ambiente de trabalho: não é só nos negócios que Tony parece prestes a matar um, ele leva a mesma agressividade para casa, ou para a terapia. Os filmes de máfia mais celebrados já investiam na construção desse personagem que não consegue levar a vida  do lado de fora de um ciclo de brutalidade e confusão mental, mas o formato de série faz com que Tony Soprano seja o mafioso que a gente pode ver mais de perto.

família soprano

E isso também tem a ver com o espaço que a terapia ocupa na série. Assim como em A Máfia no Divã, a premissa inicial de Família Soprano é de que o chefe de uma família criminosa italiana está nervoso e deprimido a ponto de explodir. A época não é boa para os negócios, os lucros já não são os mesmos porque há muita concorrência no ofício do crime; a notoriedade dos mafiosos, que nunca foi positiva, agora ganhou um verniz de caricatura e galhofa. Soterrado pelo tamanho das responsabilidades que assumiu e desiludido com o despropósito da vida adulta, Tony começa a ter ataques de pânico. Isso está no piloto. A partir daí, as sessões de terapia viram um recurso para desenvolver os temas da série. Mas é um recurso, não uma muleta. Não é que a terapia vá explicar tudo.

Há ocasiões em que discurso e prática vão para lados diferentes. A certa altura há uma tensão sexual entre Tony Soprano e Jennifer Melfi, a terapeuta, mas ele trata de sepultar  qualquer possibilidade de intimidade com seus apelos à violência e total falta de modos. Apesar disso, ela persevera. É por causa dos insights dela que conseguimos entender a história dos Sopranos de trás para a frente. Cada lembrança ou flashback tem sua importância ressaltada para o momento presente, e assim Melfi funciona também como a consciência do espectador, dizendo educadamente coisas que poderiam se resumir a um “Tony, meu querido, você não tinha como dar certo tendo sido criado por esse bando de malucos”. Isso quer dizer que ele é humano, ou seja, os defeitos não vieram do nada. Mas ele não é menos monstruoso por ser humano. Nessa primeira temporada eu tive a impressão de que Tony Soprano não gosta de ninguém. Não tem um arco para mostrar que ele foi obrigado a agir como age, e a série não se preocupa em fazer malabarismos para relativizar as falhas de seu protagonista.

Família Soprano tem uma aura de infelicidade pairando sobre todo mundo. Às vezes nem o humor negro e a qualidade cinematográfica conseguem dissipar esse sentimento. O resultado é um clima de melancolia e inevitabilidade da desgraça, somado à sensação de que ninguém presta. Até aqui a série tem sido de um pessimismo bem corajoso, mas ficam bem óbvios os motivos do sucesso tão grande e de sua permanência na memória coletiva: tem muito personagem carismático por m², uma história de crimes conduzida gota a gota, tudo do bom e do melhor. Se meus planos derem certo, eu termino a segunda temporada ainda antes de maio chegar.

Agosto pt. 2: The Night Of, O.J. Simpson, Minha Luta, Pedrazul, outras coisas menos nobres: de volta à programação normal.

Posso começar de onde parei? Não posso. Antes de entrar nas leituras do mês preciso terminar algumas coisas que eu deixei em aberto.

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Raspei o cabelo, agora sou malvadão

Nos últimos dias de julho eu falei sobre The Night Of, a série da HBO que está com final de temporada marcado para o próximo domingo. Eu disse, entre outras coisas, que o protagonista tinha uma super cara de bonzinho, e que, abre aspas para uma Talita um mês mais jovem, menos vivida e menos maltratada pela vida: “o seriado ainda não deu material suficiente para que se especule sobre os motivos do crime, ou sobre as motivações dos personagens principais, mas o pano de fundo político leva a imaginação longe”.

Pois é. Àquela altura eu tinha visto três episódios. O problema é que agora a cara de bonzinho do protagonista foi embora, porque a série decidiu que ele deveria virar meio bandidinho dentro da cadeia. Essa transição foi um pouco sem pé nem cabeça, apesar de, a princípio, fazer muito sentido. Faltando um episódio para o fim, pode ser que Naz seja o culpado e não tenha havido transformação nenhuma, ainda assim em The Night Of a sutileza é zero.  A tese é: por mais que alguém entre na cadeia como um inocente, jamais sairá de lá sem que tenha virado culpado de alguma coisa. Tudo bem, mas a gente sabe que ninguém vive de tese no mundo do entretenimento. Eu tive certa dose de razão em dizer que a cara de bonzinho não estava ali à toa, mas o que a gente conseguiu com a transformação em termos de complexidade? Bem pouquinho. A série tem roupagem e dinheiro de tevê de primeira, mas o espírito vai esbarrando mais e mais no policial rasteiro. Triste.

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Mais triste ainda é O.J.: Made in America, um documentário em cinco partes sobre a vida, a carreira e os assassinatos de O.J. Simpson. A parte boa é que o documentário é triste, mas é excelente. No começo do ano eu vi o piloto de American Crime Story: The People v. O.J. Simpson, aquela com o Cuba Gooding Jr. Fiquei com muita vontade de gostar, mas não deu. Até senti inveja de quem acompanhou com entusiasmo. A série ficcional acabou ganhando prêmios e tudo. Só que O.J.: Made in America é o melhor documentário em partes que eu já vi. Faz Making a Murderer parecer um trabalho de faculdade com cartolina e fita crepe. O seriado monta parte a parte o tamanho da relevância do caso para a questão racial norte-americana, ainda vê o crime em detalhes (sem nenhuma apelação ou queda pela morbidez) e esmiúça a personalidade de O.J. Simpson desde os tempos da faculdade até a véspera de sua prisão em 2008. No total são 450 minutos, e não dá para dizer que um deles foi mau gasto. Eu tinha até colocado um livro sobre o caso entre as minhas próximas leituras, mas acho que vou deixar para depois, tamanho o grau de complexidade dessa série documental.

Num plot twist de sangue de barata e falta de seriedade, por causa de O.J.: Made in America eu acabei revendo Corra que a polícia vem aí 33 e 1/3. Disso eu falei no texto anterior, não foi? Pois bem. Havendo tirado as séries de tevê do caminho, vamos às leituras.

Tem sido um mês de começos. O livro de agosto da meta dos 12 livros do ano é Um outro amor, o segundo volume da série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård. Não cheguei nem na metade, mas devo terminar essa semana. Assim como todos os outros da meta de 12, vai ter resenha aqui. Posso dizer que esse segundo me animou mais do que o primeiro, mas vamos com calma. Também comecei Missoula, de Jon Krakauer, aquele livro que causou certo furor por tratar de uma onda de estupros numa cidade universitária dos Estados Unidos. Eu não pretendia escrever sobre ele, mas o livro é tão bom e tão cheio de argumentos que vai ser difícil deixar de fazê-lo.

A editora Pedrazul está tendo um 2016 espetacular, e pelo jeito eles são meio incansáveis. Eu comprei a edição deles de Esposas e Filhas, da Elizabeth Gaskell e, sério, o livro é muito lindo, rechonchudo, recheado. Quer dizer: é enorme, e eu mal comecei, pouco avancei, e ainda vai levar um tempinho. Mas a gana que eu tive para comprá-lo ainda está em mim para a hora de lê-lo. De onde estou, consigo enxergá-lo na estante e ele que me espere.

Um que eu terminei por esses dias, em ebook, foi Vocação para o mal, de Robert Galbraith, que todo mundo sabe que é a J.K. Rowling. Eu fico um pouco angustiada com isso, já que, poxa, todo mundo sabe agora. Qual é a do nome diferente? Como alguém que não andou no trem de Harry Potter a tempo mas andou um pouquinho, digo que, se Rowling estiver escrevendo romance policial sob outra alcunha com medo de arranhar sua reputação de autora milionária de série de sucesso comercial incomparável, ela pode ficar tranquila que o detetive Cormoran Strike e sua assistente Robin Ellacott – uma sidekick chamada Robin; boa sacada, hein – são dois dos melhores personagens que ela já fez. Vocação para o mal, ainda por cima, é o melhor dos três romances de Galbraith/Rowling até agora. O casal está mais shippável do que nunca (não Galbraith e Rowling, eu falo de Cormoran e Robin), os personagens parecem mais confortáveis porque já ganharam bastante estofo. Para quem chegou até aqui, Cormoran e Robin já têm vida, já dá para encarar uma situação e imaginar o que um dos dois faria diante dela. Espero que um quarto livro chegue logo, e acho que deve chegar porque, pelo jeito, J.K. Rowling não dorme.

claire contrerasFalando em ebook, eu terminei ainda Kaleidoscope Hearts, um romance new adult, de Claire Contreras, com um chove-não-molha irritante. O cara larga a moça, a moça toca a vida e fica noiva de outro, o noivo morre, aquele primeiro cara se reaproxima. Ele correndo atrás, ela se fazendo de difícil. Não posso dizer que esse livro me elevou espiritualmente, mas nada tenho a esconder, ok? Ok.

take me for grantedEm Take Me for Granted, de K.A. Linde, o bonitão é vocalista de uma banda daquelas que tocam em barzinho e em festa de universidade. Todas o amam, e ele nem aí pra ninguém, só querendo transar e passar para a próxima. Isso porque ele ainda não conheceu nossa mocinha que tem açúcar nas calcinhas. Quando ele a conhece e ela o ignora, pronto: ele se apaixona caninamente (como na frase “ficar como um cachorro atrás de alguém…”). Para falar a verdade, as situações nesse livro eram tão repetitivas que eu realmente não me lembro do que me fez terminar a leitura. Acho que não fui eu, acho que Pazuzu leu no meu lugar.

This-is-War-Baby-This is War, Baby, de K. Webster, era o que mais prometia. Começou de um jeito inusitado. A guria foi raptada pelo vizinho bonitão, com quem flertava inocentemente, e ele quase a matou. Ela ficou trancafiada num quartinho, sofreu as mais terríveis humilhações. O livro tem algumas cenas muito fortes, humilhações sexuais de revirar o estômago. Até que, claro, o mocinho aparece. Um cara obsessivo-compulsivo e germofóbico que compra a nossa protagonista num leilão (pois é, o cara malvadão raptou ela pra vender num leilão e toda a humilhação sexual grotesca era parte de um tipo de treinamento). Então, pois é, o mocinho comprou a mocinha num leilão frequentado por predadores sexuais. Ele é doido, portanto? Não. Ele é bonzinho. Ele não quer maltratá-la. Nesse ponto a história perde a graça. O começo foi bem bizarro e diferente, mas o fim trouxe a mesma coisa de sempre. Não tenho vontade de ler a continuação.

Acabei. Poxa, foi preciso recapitular tudo isso (no post anterior e neste) para conseguir perceber que eu não tinha visto ou lido nada digno de um texto inteiro. Quer dizer: na verdade todas essas coisas são dignas, sim, de um texto inteiro. Eu é que não tirei material para um texto inteiro de nada dessas coisas. Mas esse foi um formatinho muito gostoso de usar para não deixar a peteca cair. Aviso aos meus poucos e bons (e excelsos, divinos, sublimes, e TOPS!) leitores que nos próximos dias voltaremos à programação normal.

The night of

thenightof

Quem quer que tenha escolhido Riz Ahmed para ser Naz, o protagonista de The Night Of, o fez consciente de que escalava os dois maiores olhos-de-cachorro-pidão da história recente da televisão. Eu me pego pensando nessa escolha quando tento elaborar minhas teorias sobre o que está acontecendo na série nova da HBO, que a essa altura está no terceiro episódio.

No piloto, Naz saiu de casa numa sexta à noite e para isso teve que pegar, escondido, o táxi em que o pai trabalha. Antes de chegar à festa, conheceu uma garota, eles foram à casa dela, transaram. Corta para ele despertando sozinho numa cozinha que não conhece. Ele sobe as escadas, se veste ao pé da cama, e vai acordá-la para dizer que está indo embora. Ela não responde. Ele acende o abajur e vê que tem sangue por tudo. Ela está morta. Ele foge. Depois, dirá que se desesperou e não soube agir.

The Night Of é um seriado de crime com detetive, advogados, tribunais, cadeia. Nada disso empolga pela originalidade, à primeira vista, mas a produção tem suas vantagens. A começar pelo orçamento, que permite uma fotografia bonita, bons atores, e aquela direção ambiciosa que caracteriza algumas coisas da HBO. O seriado ainda não deu material suficiente para que se especule sobre os motivos do crime, ou sobre as motivações dos personagens principais, mas o pano de fundo político leva a imaginação longe.

Naz é filho de imigrantes paquistaneses. Os pais são batalhadores de classe baixa, ele é excelente aluno. A família muçulmana faz o possível para passar abaixo do radar, e aí acontece esse crime horrível. Naz está no centro dos acontecimentos e todo o esforço que eles fizeram para não chamar atenção é esmagado pela enxurrada de visibilidade que um caso como esse atrai. Aos olhos de todo o mundo, um monstrinho muçulmano trucidou uma menina americana de vinte e dois anos. De certa forma o julgamento já foi feito, e agora todos ao redor vão pagar pelo crime. Só quem não se precipita em afirmar com toda a certeza que Naz é um assassino frio é quem tem contato com ele e pode ver que ele é um garoto americano como tantos, apegado à família e empenhado em se adequar.

tumblr_oakwfaoq4x1sbdg0wo1_250The Night Of é baseado na primeira temporada de Criminal Justice, da BBC, mas talvez não valha a pena buscar pistas da produção americana na inglesa. Não vi a original, mas logo de cara não me parece que uma transcrição ao pé da letra seja possível. The Night Of parece bem preocupado em tratar de temas americanos, e seus personagens, lugares e tumblr_oakwfaoq4x1sbdg0wo4_250conflitos lembram bem aquela Nova Iorque que a gente conhece através dos filmes dos anos 1990. O tema, porém, reflete totalmente as preocupações americanas após o 11 de setembro.

E é por isso que eu fico pensando nos olhos inocentes de Naz. O resultado seria o mesmo, qualquer que fosse a aparência de um filho de imigrantes acusado de matar uma moça americana branca: ele viraria um monstro. No terceiro episódio a imprensa já pergunta à promotoria se Naz tem relação com grupos terroristas, e mesmo que ele seja cidadão americano, tanto ele quanto a família precisam responder a todo momento quem são e de onde vêm. Só que mesmo depois de três episódios, nós, o público, ainda não sabemos muito sobre o suposto assassino. Ele não tem cara de bandido, como diz o detetive, mas ainda é cedo para comprar inteiramente aquele ar de fragilidade e inocência. Afinal de contas, tudo o coloca na cena do crime. Apenas o perfil e a palavra dele o tiram de lá.

Por outro lado, eu não acho que a HBO correria o risco de tratar de um tema tão delicado se fosse para chegar ao final com a descoberta de que aquele menino pintado como um monstro é realmente um monstro. Acho que é uma complicação indesejada para uma série de tevê, coisa que depende tanto da repercussão do público. Eles teriam que dizer: viu, nem todo muçulmano é um monstro, mas este aqui em particular é um monstro apesar dos olhos bonzinhos. Não acho que seja o caso. Acho que a série tem o objetivo de mostrar que o sistema criminal não está bem preparado para tratar de quem não se encaixa, mas…

the night of

Nesse caso, escolher um protagonista com tanta cara de inocente só dificultaria o trabalho de todo mundo e, pior, entregaria o ouro muito rapidamente. Portanto, das duas uma: ou Naz tem cara de bonzinho porque é mesmo um menino inocente e vai sofrer o pão que o diabo amassou (o que é meio previsível e brochante para quem assiste), ou ele é um lobo em pele de cordeiro. Se ele for culpado, a série vai ter que se esforçar bastante para evitar justo aquela superficialidade que tenta criticar, e aí pode chegar num resultado interessante.

Faço todo esse exercício inútil de futurologia só para registrar que estou completamente perdida. Comecei o segundo episódio sem ter ideia do que aconteceria, e, vendo televisão, essa é uma experiência que eu adoro. Será que eu esqueci de alguma coisa? Sim. The Night Of ainda tem o John Turturro, no papel de um advogado de porta-de-cadeia com um eczema no pé.

Olive Kitteridge

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Em quatro episódios, uma professora ranzinza meio que vai vivendo. Essa sinopse muito curta não anima ninguém a sair correndo para assistir Olive Kitteridge. Mas mais informações vão deixando a minissérie mais interessante. Tem a Frances McDormand como Olive, o Richard Jenkins como o marido dela, e uma participação excelente do Bill Murray; é uma realização da HBO; foi produzida, entre outros, pelo Tom Hanks, e é baseada em livro de Elizabeth Strout, livro vencedor do prêmio Pulitzer.

Sendo aquela a sinopse, eu não imaginei que fosse sentar na frente da televisão para só levantar mais ou menos quatro horas depois, marcando 5/5 no Filmow e 10/10 no Banco de Séries, e com vontade de chorar. Não me entenda mal: a vontade de chorar eu até já esperava. Confesso que até por isso me enrolei um pouquinho para assistir. Também esperava que a minissérie fosse muito boa: eu já sabia daqueles atributos que listei acima. Adoro McDormand, Jenkins (que, pra quem não liga o nome à pessoa, é o pai-fantasma de A Sete Palmos) e Murray, e os três, ainda por cima, ganharam Emmys por causa de Olive Kitteridge, que também levou o prêmio de melhor minissérie. Antes de ver eu não duvidava que fosse boa, mas não apostava, de jeito nenhum, que a história (eu vivo falando “história”, eu sei que o certo seria “estória”, mas me nego) fosse tão cativante – ou melhor: absorvente. Pois é.

A personagem de Frances McDormand não é só ranzinza. Às vezes ela chega a ser malvada. Em boa parte do tempo a minissérie acompanha o ponto de vista dela, daí é normal que a gente entenda esse jeito de ser. Richard Jenkins, como Henry Kitteridge, é o completo oposto da protagonista. Os dois vão esbarrando em situações propiciadas por uma vida absolutamente ordinária, e através desses acontecimentos vamos ganhando intimidade com ela e com ele. Na criação do filho, na convivência com as outras pessoas, na manifestação dos sentimentos: Olive e Henry têm abordagens diferentes para tudo. Diante das convenções sociais, ela tenta ser radicalmente sincera e ir direto ao ponto, para que todas as coisas supérfluas saiam do caminho; ele, por outro lado, tenta andar na linha das convenções, buscando fazer com que aquilo que é superficial e artificial num mundo todo engessado por regras – um gesto de gentileza, o ato de se importar com alguém – ganhe força e seja verdadeiro. Dou um exemplo: numa data que, a princípio, não tem ou não precisa ter significado, como o Dia dos Namorados, ele faz questão de elaborar uma declaração para que a marca não passe em branco. Para que seja mesmo um dia de namorados. Ela, do lado dela, parece fazer questão de não se importar meio que para denunciar a artificialidade da data, para escancarar aquele aceno em direção a uma felicidade que ela sabe que não existe. A questão é: ele também sabe que não existe, mas quer inventar. Essa invenção, aos olhos dela, é insinceridade e desonestidade.

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Depois do meu, esse é o cachorro mais lindo do mundo todo

Desta forma, Olive Kitteridge conta a história de duas pessoas que não foram feitas uma para a outra. Com a sinceridade brutal de Olive, Henry se machuca e é infeliz. Com a insistência inocente de Henry, Olive se irrita é infeliz. É claro que assim eu estou reduzindo muito os temas que a minissérie encontra, e até evito comentar as consequências de um relacionamento assim, porque ver a história se desenrolar vai te fazer pensar muito mais do que esse texto, mas acho que basta dizer que Olive Kitteridge é a história do amor na medida do possível.

Tem algumas pequenas subtramas na minissérie, e elas aparecem através de personagens secundários, mas acho que elas são uma maneira de jogar luz nesse eixo principal, que é o relacionamento de Olive e Henry. Eles têm um único filho, que vai acabar tendo problemas com a mãe – e talvez a reação deste filho ao comportamento radical de Olive seja uma boa mostra do despreparo contemporâneo para deixar de lado as convenções e ir direto ao ponto.

Quando Seinfeld terminou nos anos 1990, virou consenso afirmar que a sitcom mais bem sucedida e mais aclamada pela crítica era uma análise minuciosa das relações entre as pessoas, de todas aquelas partes dessas relações que não foram devidamente mapeadas e que são, portanto, território sem lei. Esse ponto de vista foi comprovado depois, quando Larry David – um dos criadores de Seinfeld – fez de Curb Your Enthusiasm a jornada de um homem ranzinza contra toda a ladainha (bullshit, digamos) do mundo. Olive Kitteridge, a personagem, é uma espécie de Larry David ou George Costanza. O que tem sua graça, mas é muito triste no fim das contas: basta a gente pensar que um cara como o Costanza e uma mulher como Elaine Benes vão, provavelmente, morrer sozinhos.