Precisamos falar sobre o Kevin

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Lionel Shriver é uma das minhas autoras favoritas, e eu ainda não havia lido Precisamos falar sobre o Kevin. Foi esse o romance que celebrizou a escritora norte-americana, mas eu comecei por O mundo pós-aniversário, que me encantou e me fez querer ler tudo o que ela tinha publicado. Adiei Kevin até conseguir encontrar a capa da primeira edição brasileira, aquela que tem um menino usando uma máscara ao mesmo tempo infantil e assustadora, publicada pela Intrínseca. A tradução é de Beth Vieira e Vera Ribeiro.

Eva viajou o mundo todo por conta de seu trabalho: escrever guias com os melhores lugares para se hospedar, comer e conhecer em qualquer país. Gostava do que fazia e continuou viajando, mesmo depois de casada. Franklin, o marido, tinha um trabalho oposto ao dela. Com sua camionete 4×4, ele visitava terrenos que serviriam para locações de uma empresa. Eva e Franklin divergiam no modo de ver a vida, mas mesmo assim eram apaixonados, e depois de um bom tempo tiveram Kevin, o primeiro filho. Eva era uma mulher independente, e não estava preparada para mudar de estilo de vida, mas precisou abdicar das viagens para poder se concentrar em Kevin, um filho por quem ela nunca conseguiu sentir carinho, nem mesmo quando bebê. Franklin se ressentia da falta de amor de Eva por Kevin, e reagiu mimando-o demais.

Eva parece ter sentido a maldade da criança ainda no útero, e Franklin, mais do que amar Kevin, amava a ideia de ter um filho. Ele parecia cultivar acima de tudo a fantasia da família americana perfeita, e por isso não conseguia enxergar as perversidades cada vez mais evidentes da criança. Eles eram ricos, bem educados, podiam pagar as melhores escolas e, ainda assim, eram disfuncionais. Mesmo nascendo em uma família afortunada, Kevin cresceu para se transformar em um assassino em massa.

Lionel Shriver escreveu Precisamos falar sobre o Kevin no começo dos anos 2000, um entre muitos períodos turbulentos da história dos Estados Unidos da América. O romance faz questão de refletir esses tempos de eleições conturbadas, ameaça terrorista, recrudescimento militar, e, no plano doméstico, massacres em escolas. O de Columbine aconteceu em abril de 1999, e ele é citado e contextualizado em Precisamos falar sobre o Kevin. Mas mais do que tratar objetivamente de um fenômeno bizarro como o desses assassinatos, o romance de Shriver é uma investigação psicológica das mentes que geraram esse tipo de tragédia ao mesmo tempo familiar e coletiva.

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Acho que mais do que retratar a história de um assassino inspirada em acontecimentos da vida real, a autora parece querer exibir os problemas de uma nação que  não consegue lidar com seus privilégios de país soberano – ou, numa outra forma de dizer: com seus problemas de país de primeiro mundo. Além de mimado, Kevin é entediado, irônico, cínico. Não consegue tirar prazer das coisas que se espera que uma criança goste, e, nesse sentido, ele parece ser uma continuação de Eva, sua mãe. Ela reluta em abraçar a vida familiar, despreza o sonho americano pelo qual o marido se encanta. Assim como Eric Harris e Dylan Klebold, os assassinos de Columbine, Kevin é o produto de uma desilusão.

Por causa disso, Kevin é a força do livro. Eva é a narradora, e por isso eu achei que minha identificação fosse ficar com ela, mas Lionel Shriver joga o interesse do leitor na direção de Kevin. Ele é uma pessoa ruim, isso fica claro desde o começo, quando Eva narra os primeiros anos de vida do menino que sabemos ser um assassino, mas os questionamentos e as sacadas que o livro consegue fazer se dão através dele. Kevin é um personagem inteiro, muito bem acabado. Sua personalidade é ao mesmo tempo um mistério e uma espécie de buraco negro; quem mais chega perto de desvendá-lo é Eva, e eu, leitora, me sentia a cada página cada vez mais induzida a tentar descobrir que coisas, exatamente, tinham moldado essa personalidade. E adivinha? No caso de Kevin, não há resposta, não há relação direta de causa e efeito. Assim como a mãe, ele é produto de desilusão, apatia e tédio, mas o que o fez percorrer este caminho ao assassinato? Um dos grandes méritos do romance de Lionel Shriver é manter as respostas inconclusivas que encontramos nas histórias reais. Assim como o quarto de Kevin, que a mãe tenta investigar em busca de pistas da personalidade dele, a resposta é um grande vazio.

O formato epistolar do romance me faz pensar que mais do que mandar cartas para o marido, a narradora Eva quer expurgar um pouco da culpa que ela não admite diretamente, mas que está lá, quase palpável, em cada capítulo. É uma culpa ao mesmo tempo individual e coletiva. Quando Eva reclama de seu filho, está falando nesses dois níveis. Franklin, um homem de vida simples e acima de tudo patriótico, ama Kevin incondicionalmente, e prefere não ver os problemas que estão na sua cara. Quando Eva relata as discussões que tinha com o marido por causa de Kevin, sinto que a questão se estende para o próprio país: de um lado o patriótico iludido e do outro o arrogante que desdenha do que tem. O fluxo desses pensamentos chegou a me irritar no começo, e admito que, como todos os acontecimentos estavam no passado, eu sentia que a exposição deles deixava a história menos sedutora. Mas depois da página cem eu fui atropelada por Kevin, e tudo o que eu queria era saber mais e mais da história dessa família. Por isso, nem o dilúvio de considerações da narradora – e suas ponderações que dizem mais respeito à realidade norte-americana – me tirou da história.

Lionel Shriver usa a trajetória de Eva, Kevin e Franklin como um microcosmo do que acontecia com o próprio país, mas isso não significa que a trama em si não é suficiente para envolver quem chega ao livro. Mesmo se deixarmos de lado o contexto e as metáforas, a história dessa família já vale o tempo investido.

O mundo pós-aniversário continua sendo meu livro preferido da Lionel Shriver, mas Kevin é definitivamente um dos melhores personagens que eu já conheci. Fica evidente que a autora fez uma pesquisa enorme para refletir nele as características de uma geração que cresceu com tudo à disposição, mas que ainda assim encontra motivo para sofrer e para avacalhar com tudo.

2 comentários sobre “Precisamos falar sobre o Kevin

  1. Val disse:

    Já haviam me recomendado O mundo pós aniversário e entrei em contato com Precisamos falar sobre Kevin em uma época em que eu estava estudando bastante sobre psicopatas, mas não li o livro. Penso que deve ser muito interessante, ainda mais aliado ao contexto americano, como você comentou. Acho que vou começar por ele.
    Bjos!
    Dê uma passadinha, se desejar, também falo sobre livros:
    http://1pedranocaminho.wordpress.com

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