Os resíduos do dia

osresiduosdodia

A história modesta de um homem modesto rendeu um livro apaixonadamente reflexivo e triste. Esse é o meu sentimento com Kazuo Ishiguro e o seu Os resíduos do dia, com tradução de José Rubens Siqueira. Minha edição é a antiga, por isso o nome Resíduos ao invés do mais recente Os vestígios do dia. Traduções de título à parte, acho minha capa muito mais representativa.

Stevens é mordomo em Darlington Hall, uma ilustre mansão inglesa, há mais de trinta anos, e no verão de 1956, já idoso, ele é aconselhado por seu novo patrão, um americano, a fazer uma pequena viagem, para tirar um descanso. O mordomo, que não tem parentes e nenhum lugar para ir, decide visitar uma antiga governanta que trabalhou na mansão em seus tempos áureos. Durante esta curta viagem de cinco dias, Stevens irá rememorar momentos do seu trabalho que vão esclarecer para nós, leitores, como um homem que pareceu levar uma vida trivial e sem grandes sobressaltos pode, mesmo com tão pouco, ter tanto a contar.

No fim da década de 1920 e início da década de 1930, no período entreguerras, a mansão ainda pertencia a um nobre inglês, Stevens estava no auge de sua vida e gostava de seu trabalho. Um mordomo que servia homens importantes enquanto eles tomavam decisões fundamentais para o futuro do Reino Unido e da Europa. Alguém que, como ele mesmo diz, conseguiu chegar “tão perto do eixo das coisas quanto um mordomo poderia desejar”. Por boa parte do livro é possível pensar que só o trabalho interessou a esse homem, e que na vida pessoal dele não aconteceu nada digno de nota, mas, enquanto ele escolhe o que contar e o que omitir, ao sentimento de dever cumprido do narrador se acrescenta um novo-velho entusiasmo – escondido com discrição e elegância – quando ele se lembra de uma antiga governanta, Miss Kenton. Ela foi por muitos anos o braço direito de Stevens e, aos poucos, é fácil perceber que havia paixão ali, mesmo entre todas as formalidades e convenções a que os dois precisavam estar atentos.

residuosdodia

Esta lealdade ao serviço, ao patrão e às normas sociais do país foi o que mais me comoveu no livro. É uma entrega ao mesmo tempo admirável e triste que, se já não encontra razão de ser durante a decadência do mordomo, na década de 1950, hoje em dia parece de outro planeta. Minha impressão de um mordomo britânico, do início do século XX era bem essa: a de um homem sisudo e solene. Para mim um mordomo é a representação perfeita de um britânico. Durante toda a narrativa, senti isso em cada palavra de Stevens, que além de seu jeito formal de falar, tem muito orgulho de ser como é. Um trecho resume bem o que estou tentando dizer:

“O que é exatamente essa ‘grandeza’? Onde, exatamente, ou em que ela reside? Tenho plena consciência de que seria preciso uma cabeça muito mais sábia do que a minha para responder a essa pergunta, mas, se fosse forçado a arriscar uma resposta, diria que é a própria ausência de drama ou espetaculosidade óbvios que distingue a beleza de nossa terra. O que é perfeito é a calma dessa beleza, a sensação de contenção. Como se o país soubesse de sua própria beleza, de sua própria grandeza, e não sentisse nenhuma necessidade de proclamá-la. Comparativamente, o tipo de paisagem com que nos brindam a África e a América, embora sem dúvida mais excitante, por certo pareceria inferior ao observador objetivo, devido a seu indecoroso exibicionismo”.

Para Stevens, demonstrar os sentimentos também é um ato de “indecoroso exibicionismo”, e talvez por isso, seus sentimentos tenham ficado guardados por tanto tempo, rompendo-se em apenas um momento, um pequeno momento em que conseguimos vislumbrar todo o excesso preso dentro dele, tudo aquilo que nunca teve vazão. Talvez por isso o impacto no leitor (pelo menos em mim) seja imenso. Kazuo Ishiguro conseguiu contar a história de um homem contido, com dificuldade em expressar afeição, mas que no fim nos surpreende com o amor, mesmo que esteja para sempre bloqueado emocionalmente. Ao realizar isso, ele conta também a história do fim de uma época de  grandeza.

A fidelidade de Stevens a seu patrão, Lord Darlington, também é o motivo de seu orgulho pelo maior bem que, para ele, uma pessoa pode ter: a dignidade. Stevens acredita que a dignidade não é uma qualidade que aparece em qualquer pessoa, e que não está ligada a opiniões firmes. Ele cultiva aquela modéstia subserviente que faz tão bem ao status quo. Em suas palavras, dignidade se resume “a não tirar a roupa em público”. Por isso, mesmo sabendo que Lord Darlington, no auge da segunda guerra, conviveu com os inimigos, mesmo não concordando com muitas das atitudes do patrão – como, por exemplo, demitir duas empregadas judias – Stevens nunca abandonou sua lealdade, mesmo depois da morte do antigo patrão. Ele é um típico filho das classes baixas inglesas, acostumado com (e afeito a) a ordem vigente, mesmo que isso lhe custe a felicidade pessoal. Quando ele finalmente demonstra alguns de seus sentimentos, não tem como não sentir pena de um homem cujo tempo já passou, alguém que serviu ao que acreditava ser correto.

Os resíduos do dia pode tratar de um homem modesto, mas conta uma história nada simplória. Stevens é um narrador que consegue nos tocar mesmo quando abominamos suas atitudes e decisões. Este é um romance verdadeiramente enternecedor.

Um comentário sobre “Os resíduos do dia

Deixe um comentário