Uma lembrança de Felicity

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Em 1998 Felicity estreava na televisão como um drama adolescente. No mesmo ano Dawson’s Creek surgia. Era o fim da década que popularizou Barrados no BaileBeverly Hills, 90210 para quem não assistiu na Globo ou nunca ouviu falar da série –, e mesmo assim era possível contar nos dedos quantas séries voltadas para o público jovem existiam. Blossom parecia legal, mas era uma sitcom inocente. Buffy fazia muito sucesso, mas era sobrenatural e por isso abrangia um público muito maior (dos mais novinhos até os mais velhinhos). Alguns anos antes, uma série muito parecida com Felicity tinha surgido e morrido rapidamente: My so-called life. Com um ar mais introspectivo, o seriado era bem reflexivo e interessante. Acho que o erro desta série com a Claire Danes foi tentar abocanhar todos os temas que pareciam ser importantes para educar os jovens. Mesmo sendo mais perspicaz e menos caricata do que Barrados no Baile nos diálogos e personagens, a série esbarrou em seus temas dignos de Malhação: drogas, adultério, abuso infantil… e por aí vai. Ainda parecia entretenimento para jovens criado por velhos.

Felicity foi criada por J. J. Abrams e Matt Reeves, e não cometeu nenhum desses erros. A série durou quatro anos, sendo cada temporada o ano respectivo de universidade na vida de Felicity, a protagonista. Não sei se o mérito é todo do J. J. Abrams, mas o que aconteceu em Felicity eu só encontrei em uma outra série: Seinfeld. É uma mistura de plenitude com excelência. Felicity consegue conversar com o espectador sem ser piegas. Mesmo com uma protagonista muito sonhadora, a série passa longe do excesso de sentimentalismo.

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Falando na protagonista, Felicity – vivida por Keri Russell –  é a melhor mocinha que já existiu. Ela vive sua vida de universidade entre muitos devaneios e reflexões. Eu estava com muitas saudades e resolvi rever o piloto da série – coisa que eu recomendo a todo mundo. Felicity sempre teve um amor platônico por Ben Covington, um atleta popular da escola. No dia da formatura ela toma coragem e pede para ele assinar seu livro de formanda. Ben é simpático e escreve que sempre desejou conhecê-la melhor. Ele é cortês, mas reservado em sua pequena interação com Felicity. Isso não importa para a nossa protagonista. Ela toma a gentileza como um sinal verde e vê uma chance que nunca tivera nos anos de escola. Com um futuro todo planejado em Stanford, onde faria medicina, ela larga tudo e se abala para a Universidade de Nova York, – adivinha só – a mesma de Ben.

Isso acontece no piloto, e depois, com o desenrolar da série, nós percebemos que Ben foi uma desculpa para Felicity fazer o que sempre quis, que era viver de uma forma mais desprendida. Os anos de escola foram de muito estudo e poucos amigos, e se ela seguisse os passos do pai para Stanford, sua vida continuaria nos mesmos moldes. Esse grito de independência é o tema de Felicity, e é isso que nós acompanhamos nos quatro anos: as dúvidas e incertezas de uma pessoa no início de sua fase adulta. As decisões muito erradas que qualquer pessoa no início dos vinte anos toma, e a inspeção que fazemos de nós mesmos a todo momento com nossas atitudes que quase nunca batem com o que achávamos que faríamos. Afinal, esse é o momento em que começamos a realmente nos conhecer.

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Por isso Felicity tem um lugar tão especial na minha vida. Assisti a série depois que ela acabou, com pelo menos uns cinco anos de diferença. Minha idade batia com a das personagens, e por muitas vezes me vi ali, talvez não com as mesmas dúvidas que Felicity, mas com um sentimento muito próximo daquele vivido por ela. Mesmo sem abordar os temas de praxe da cartilha das séries quadradas para jovens da televisão, Felicity conseguiu me ajudar muito. Tanto aqui quanto em Seinfeld (um dia escrevo sobre eles) eu senti que a série de televisão conseguiu transcender o entretenimento.

Eu tenho a impressão de que Felicity foi um laboratório para muitas das coisas que J. J. Abrams e sua produtora iriam fazer mais tarde. Mais importante do que isso, os roteiros, atuações,  e a fotografia: tudo ali parecia prenunciar a época em que  consideraríamos a televisão não só um veículo de entretenimento, mas também uma forma de arte. Se hoje em dia livros sérios são escritos sobre a influência cultural de séries como Mad Men, The Wire e Sopranos, não será exagero dizer que uma das etapas dessa mudança se deu quando os executivos pararam de tratar jovens e adolescentes como crianças patetas e deixaram de subestimar-lhes a inteligência.

Infelizmente Felicity é praticamente um fantasma aqui no Brasil. Ela não foi lançada em DVD e passou há muito tempo no SBT. Por isso não me sinto mal em dizer que é possível achá-la por torrent. Vale lembrar que ela é antiga, e é impossível assisti-la sem sentir aquela sensação cafona dos anos noventa, mas o estranhamento para quando você escuta Felicity dizer: Dear Sally…

12 comentários sobre “Uma lembrança de Felicity

  1. Arthur Tertuliano disse:

    Confissão: acessava teu blog TODO SANTO DIA na livraria, umas 3 ou 7 vezes pra ver se tinha coisa nova. Leio tudo, só não comento porque costumo fazer comentários longos e chamaria a atenção da gerência.

    Dias 3-6 estarei em Curitiba. Avisa o Fi pra gente marcar alguma!

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