Resumo do feriado: personagem razoável não rende filme de terror?

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Venho de um feriado com média de três filmes por noite. Sinto que deixei a Netflix no prejuízo, e que as operadoras vão insistir naquela ideia de banda larga limitada por minha causa. Não me arrependo do cobertor, nem da(s) pizza(s), nem do pinhão, nem do cuque de doce de leite (pois é!), só que parei para pensar e: gente, assisti muita besteira. Hush – A Morte Ouve, Uma Noite de Crime, Creep, Renascida do Inferno, Olheiras, Imagens do Além, At the Devil’s Door, The Ouija Experiment, Em Sua Pele, Pontypool. Teve outras coisas. Revi um especial do Louis C.K. e Annie Hall do Woody Allen, vi um documentário bem fraco sobre divulgadores científicos e dormi em Coração Louco, com Jeff Bridges.

Deixo o feriado para trás precisando de uma desintoxicação (alimentar, eu digo) e constato que, para cada filme de suspense/terror legal que aparece, como A Bruxa, surgem no mundo dez maluquices que a Netflix deve comprar em um bandejão num cantinho sujo e triste de um estúdio. Entre esses filmes uma recorrência: gente razoável não serve para passar perigo. No cinema, as pessoas que morrem ou brigam pela vida estão sempre fazendo uma temeridade atrás da outra, teimando, investindo em pilhas erradas, dormindo com a janela aberta, transando em uma casa recém comprada e sem móveis. O terror é onde imperam as decisões ruins.

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A começar por esse Hush – A morte ouve. Uma escritora surda-muda acha que é uma boa ideia morar numa cabana isolada e praticamente sem vizinhos. Mais do que isso, quando anoitece ela esquece do mundo ao escrever e fica sentada, bem tranquila, de costas para uma porta de vidro de onde se pode prever o escuro da floresta e onde, é claro, é lógico, vai aparecer um psicopata usando uma máscara. Uma cabana no meio do mato com porta de vidro. Qualquer pessoa razoável escaparia dessa.

Em Uma noite de crime, Ethan Hawke aparentemente vende sistemas de segurança e ficou muito rico com isso. Normal. Só que estamos num futuro distópico, ainda que logo ali, em que os norte-americanos tiveram que aprovar uma lei permitindo a criação de uma data em que qualquer crime é permitido. O dia virou uma tradição nacional. Algumas pessoas saem às ruas para caçar um mendigo ou matar um desafeto, outras se escondem em casa. Ethan Hawke e a mulher se escondem em casa, riquíssimos, o sistema de segurança deles é aparentemente infalível, mas eles têm um filho meio idealista que destrava todo o aparato e abre a porta para um desconhecido. Pai e mãe razoáveis não deixariam o sistema de segurança à mercê do filho meio idealista, mas pai e mãe razoáveis não dão muito material para filme.

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Creep é bem legal. Eu conheci Mark Duplass em The Mindy Project. Gostava dele, mas não imaginava que fosse um ator tão bom. Em Creep ele interpreta um sujeito meio carente e bizarro que contrata um cameraman para documentar um dia em sua vida. Até aí tudo bem? Que nada: documentar um dia em sua vida no meio do mato. No lugar do cameraman uma pessoa razoável teria chegado ao local combinado, visto o tipo do sujeito e arranjado uma desculpa em três minutos, mas três minutos não é tempo suficiente para um longa-metragem.

Renascida do Inferno também tem Mark Duplass. Ele é noivo de Olivia Wilde, eles são cientistas e descobriram um soro capaz de ressuscitar seres vivos. Logo no começo eles conseguem trazer um cachorro de volta à vida. Ninguém neste filme é razoável, acho que estamos todos acostumados com isso, mas quando, num filme com cientistas, os cientistas são as pessoas que menos se importam com correção, método, padrão e essas coisas sem as quais não existe ciência, a sensação que se tem é de que tá todo mundo louco. Olivia Wilde morre, ressuscita e o longa vira uma mistura de ficção científica com história de exorcismo. O diretor quer que tenhamos medo do cachorro, mas o cachorro é o mais razoável do laboratório inteiro.

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Olheiras, que a Netflix chamou de Noites em Claro, mostra um casal que mora numa metrópole e está prestes a ter um bebê. Para a segurança do bebê eles chegam à seguinte conclusão: vamos nos mudar para um casarão afastado da cidade. Esse é daqueles filmes em que as pessoas além de nada razoáveis são também escrotas. Não há motivo algum para esse casal estar junto. Eles se odeiam. Eles claramente odeiam o bebê, que estaria em melhores mãos se fosse roubado de uma vez pelo fantasma, que por sua vez é a coisa menos esquecível do filme todo.

Imagens do Além tem Joshua Jackson passando vergonha. Eu demorei para perceber que, quando assistia Dawson’s Creek, meu coração não batia na direção de J.J., muito menos na de James Van Der Beek. Batia, é claro, pela Katie Holmes. Mas isso não me impede de ter um carinho por J.J., que só cresceu nas duas primeiras temporadas de The Affair. Lá, ele interpreta um homem correto, bom marido, sincero e compreensivo embora atormentado e um pouco bêbado. Aqui, nesse remake de um filme tailandês, ele é um bosta. Irrazoável é a mulher dele que aguenta este traste. Ele é um fotógrafo renomado e a carregou para Tóquio, onde vai trabalhar por uns tempos. Logo no primeiro dia, ela atropela ou acha que atropela uma moça numa estrada deserta. O filme insiste naquela fórmula de pessoa crédula X pessoa incrédula, em que o espectador está do lado da crédula, e a incrédula só aparece para nos fazer passar raiva. Nada faz sentido. Ninguém se comporta com bom senso, as coisas acontecem porque o roteiro disse que tinham que acontecer e ponto.

At The Devil’s Door não é de todo descartável. Bebe bastante na fonte da franquia Sobrenatural e é bem habilidoso na construção daquele medinho cena a cena. Deixa a impressão de que a concepção original demandava mais de um filme, mas o produto final acabou cortando muito daquilo que daria liga à trama. Conta a história de três mulheres que se envolvem com um demônio estuprador. A personagem irrazoável, sem quem o filme não existiria, vende a alma a esse demônio por quinhentos dólares. Pior do que isso, ela usa o dinheiro para comprar um tênis vermelho. De novo: se isso não tivesse acontecido não haveria filme, mas eu conheço umas pessoas da vida real que fariam igualzinho.

The Ouija Experiment não mereceria nem menção. Não existe filme. Em Em Sua pele, Selma Blair acabou de perder a filha e se muda para um casarão, que nem o pessoal de Olheiras, mas aqui em vez de um fantasma é uma família de malucos que vai tentar acabar com a vida dela. Não que ela se ajude. Pontypool foi o melhor filme do feriado e talvez mereça um post inteiro. A nota baixíssima nos agregadores o colocou na minha mira quando eu procurava mais coisas descartáveis, só que não foi o caso.

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Seria uma boa ideia se a gente se separasse, né?

O protagonista burro e irritante é um dos grandes pilares do cinema de entretenimento. Só que o esquema tem que funcionar de acordo com uma lógica que questione suas burradas. O filme não pode achar que a gente vai comprar uma imbecilidade como coisa corriqueira e decisão bem tomada. Se ele o faz, perde a razão de ser. Quando a besteira que o protagonista faz fica no caminho de sua segurança, e o filme coloca pedras que ele precisa tirar do caminho, a câmera vira uma espécie de narrador que vai contando, tipo: tá vendo como ele é burro? Agora, quando a lógica do filme precisa de premissas imbecis e inverossímeis, a coisa desanda. É aí que a gente se sente ofendida lá na alma. Parece besteira mas, se na hora de sentar de costas para uma porta que dá para uma floresta escura, hoje em dia depois de um século de cinema, a protagonista, em vez de agir como um boneco de papelão sem medo e sem bom senso faz, sei lá, um esforço para fechar a porta e ficar de olho no que possa vir das sombras, a sensação que fica é outra: é de que o filme em questão está disposto a brincar com a gente em outros termos, ao mesmo tempo novos e os de sempre. Não foi o que aconteceu com a maioria dos filmes do meu feriado, mas o resultado final foi bom.

Eu entendo que boa parte daquilo que dá graça a filmes como esses que eu citei seja a ruindade. Às vezes o conteúdo da Netflix me lembra o das locadoras ruins dos anos 1990. Rodar por coisas que a gente não conhece, reconhecer atores de televisão nem sempre sabendo o nome deles, reagir com indignação a cada decisão idiota que um personagem toma – tudo isso é gostoso. Ver essas bombas uma atrás da outra enche o meu coração de alegria.